Planet Hemp em Porto Alegre

Como diria o ditado popular: depois da tempestade vem a bonança, ou no caso de Porto Alegre, vem a fumaça, ou melhor dizendo, o Planet Hemp. Depois de passar por uma das tempestades mais severas da história recente, e com uma cidade ainda beirando o caos, com diversos locais sem luz, água, devastada por árvores bloqueando avenidas, a capital do Rio Grande do Sul ainda se recuperava, quando quinta-feira tivemos o aguardado show do Planet Hemp. Confesso que o show poderia ter sido no Pepsi On Stage e devido à energia excessiva da banda, o Araújo Vianna não parecia o local perfeito para seus fãs, mas oito anos depois, a banda retornou a cidade para um show histórico, tour do último disco, o premiado Jardineiros, que o NoSet conta nas linhas abaixo.

Com uma agradável (dentro do possível) quinta-feira de verão, muita gente chegou cedo para o local, digo frente do local, onde a galera se refrescava com cerveja gelada e fazia a cabeça em homenagem à premissa básica da banda. Devido a essa demora de o povo entrar (coisas que o gaúcho adora fazer…), o show marcado para às 21h, teve início por volta das 21h40min. Um telão mostrava através de imagens e sons passagens da história da banda, lembrava o lendário Skunk, fundador da banda e que não teve o privilégio de ver o Hemp estourar, a discografia da banda, quando entraram em cana por causa de um autoritário juiz, e no meio disso tudo, surge a banda, para êxtase de um auditório lotado. Sem gradil de imprensa, um buraco ficava na frente do palco, e logo Marcelo D2 e BNegão incitam o povo a tomar a frente do palco, porque segundo eles, show do Hemp sem rodinha não é show. E começava ali a porrada sonora da banda, abrindo com Distopia, do novo disco. Nessas alturas não tinha mais ninguém parado ou sentado no lugar e uma multidão tomou conta da frente do palco. Segue o baile com Marcelo Yuka, homenagem ao baterista falecido exatamente há cinco anos, e Taca Fogo, todas do Jardineiros.

Mas é com Dig Dig Hempa, clássico do disco Usuário, de 1995, que a galera literalmente entra em catarse. Depois da quase vinheta Planet Hemp, a banda segue visceral voltando aos 90 com Fazendo a Cabeça, do mesmo disco. A excelente Hip Rock Rio, do disco Os Cães Ladram e a Caravana Passa, de 1997, faz o povo delirar. O mesmo com  Mary Jane e  a mais recente Salve Kalunga, mais uma homenagem da banda a Fabio Kalunga, líder do grupo Cabeça, irmão da banda e falecido em 2017. Vale destacar a presença visceral dos dois vocalistas. Se Marcelo D2 ainda derrapa, ao meu ver, nas suas incursões pelo samba, apesar do sucesso que tem, ele é um frontman de banda perfeito, fazendo esse crossover entre punk, rock, rap, hardcore e juntamente com BNegão, formam uma dupla de respeito, dividindo com maestria os vocais. E o Planet tem como mérito fazer o que sempre faz, não inventa, não cria moda, vive ainda nos anos 1990 e apenas recicla com atualidades o discurso que seus fãs idolatram. Sem grandes inovações, faz o feijão com arroz de sempre, tendo a maconha como mote, o discurso social como bandeira e tem como peso da banda aliado a samplers e DJ’s, o poder do Planet Hemp.

Mostrando a força do novo disco e tentando fixar as novas canções na boca e na cabeça do povo, seguem uma sequência do disco Jardineiros, com a divertida Puxa Fumo, onde BNegão até brinca com a plateia, Amnésia e a música que dá o título ao disco, com bom refrão, Jardineiros. Para facilitar, no telão ao fundo era colocado o nome da cada som executado, pra situar a rapaziada. Não Compre, Plante, do disco Usuário, abre alas para Legalize Já, praticamente um hino da banda, essa com o Araújo Vianna vibrando, lembrando da época que o Planet era uma das bandas mais temidas e odiadas do país, ao menos para os caretas e caras que nunca entendem nada. Destaque pra galera presente,  uma geração que tinha como ídolos os seus heróis do Rio de Janeiro, e numa volta à adolescência se emocionava com o discurso da banda, regado a muita machonha (mas é lógico, é um show do Planet Hemp), rodeão na frente do palco  e histeria. O show do Hemp segue com Fim do Fim, mais uma do disco novo, e com 100% Hardcore, mais uma vez as rodas se abrem no Araújo, tomado pelo Hemp. Depois surgem mais homenagem, dessa vez ao Jabá, baixista do Ratos de Porão, quando a banda toca Crise Geral, clássico da banda paulistana de 1987.

Um ponto negativo, mas que não atrapalhou a galera que estava ali pra curtir, era o som bastante embolado, que às vezes estourava demais nas vozes e a massa sonora ficava comprimida. Um problema histórico de algumas bandas que tocam alto demais no Araújo. Remedinho segue a toada do disco novo, seguida por mais duas da obra de 2022, Veias Abertas e Eles Sentem Também, aquele momento meio de buscar ceva ou fechar mais um. Anima de novo com Deisdazseis e Phunky Buddha, dois petardos do Usuário, de 1995, mas a coisa engrena de vez com a ótima, com o quilométrico nome Raprockrollpsicodeliahardcoreragga, fazendo a galera enlouquecer novamente. O show teve participação do Jackson, guitarrista gaúcho que tocou com a banda nos anos 1990 e inclusive caiu junto em cana no episódio de 1997 em Brasília, mostrando que ainda manda muito bem na guitarra. 

A banda sempre foi um diferencial pro grupo, Nobru é um excelente guitarrista, com fraseados precisos, uma palhetada característica e com um timbre ótimo de guitarra, o batera Pedrinho Garcia é discreto, mas extremamente preciso, mantendo a batida perfeita da banda, e Formigão, o baixista mais sonolento do rock brasileiro, quase sumido, mas uma figura importantíssima na banda. Me pergunto se ele tocasse um pouquinho melhor, o plus que daria nas músicas… enfim, o trio é redondinho e faz a cama sonora pra BNegão e D2 frasear, falar e cantar. E não podemos esquecer o talentosíssimo produtor e faz tudo Daniel Ganjaman, que toca teclados, sintetizadores, guitarra e o que tiver pela frente e também o DJ Venom incrementando com seus scratchs e beats furiosos. O Ritmo e a Raiva, parceria com Black Alien, segue o set e Zerovinteum levanta a massa, quando D2 e BNegão começam no breu Quem tem Seda? e Cadê o Isqueiro?, presenciei um dos momentos mais marcantes do Araújo. Os dois pediram que o local fosse iluminado por luzes de isqueiro e a cena foi muito bacana, porque fogo era o que não faltava pra galera, em uma imagem incrível, sem os celulares que iluminam os shows de hoje.

Segue mais uma recente, Onda Forte, mas é com Queimando Tudo que a catrefa entra em catarse de novo, pulando e cantando o clássico dos anos 1990. Nunca Tenha Medo, mais uma do Jardineiros, abre pra Stab, do disco A Invasão do Sagaz Homem Fumaça, e Contexto, outra maravilha  do mesmo disco de 2000. A banda também não cansa de elogiar Porto Alegre, sensibiliza-se com o drama do caos que a capital ficou pós temporal e os dois fazem ode a bandas daqui como DeFalla, Ultramen, Comunidade Nin-Jitsu, Da Guedes, entre outras que fizeram a cabeça da banda carioca. 

Samba Makossa, de Chico Science e Nação Zumbi, que teve versão do Charlie Brown Jr. também é um dos grandes momentos do show, num baita arranjo cheio de groove e peso.  A Culpa é De Quem?, do primeiro disco, é cantada pela galera e é óbvio que o show acaba com Mantenha o Respeito, com direito à apresentação da banda, discurso de BNegão e D2 e um arroubo geral das quase quatro mil pessoas que lotavam o Araújo Vianna. Um show cru, direto, com 34 músicas em pouco mais de duas horas.

E assim o NoSet abre a temporada de shows de 2024, com um histórico show de uma das bandas com mais fãs de verdade no Brasil, o Planet, com seus mais de 30 anos, continua o mesmo, não muda o papo, manda sua mensagem de forma direta, fala aquilo que a galera que gosta deles quer ouvir e ainda contagia. Mesmo não ousando, ainda continua visceral, atual e segue respeitado por muitos, amado pela sua esquadrilha de fanáticos e mostra com o apenas mediano disco Jardineiros, que fazer o mesmo ainda agrada. Mas o mais importante: ainda produz coisa nova e não se abraça ao passado e mostra que atitude e posicionamento não se muda. Ao vivo, o Planet Hemp ainda continua uma experiência vibrante e esfumaçada!

 

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