O Messias do YouTube – “Deuses Caídos”

Mais uma vez peço para levar a sério o ditado: “Há mais entre o céu e a terra do que a nossa vã filosofia explica”… Ou algo assim, nunca sei dizer direito!

Enfim, o livro “Deuses Caídos”, do autor carioca Gabriel Tennyson, faz o leitor repensar cada vez mais os seus dogmas e as suas crenças. Será mesmo que anjos, santos, demônio, seres bíblicos e mitológicos estão tão distantes assim do nosso dia a dia?

Os três personagens centrais do livro, Judas Cipriano, Julia Abdemi e Samael, mostram como tudo isso pode ser relativo.

Judas Cipriano é um padre, mas totalmente fora dos padrões, é um exorcista, não celibatário, assumidamente gay e com uma queda por travestis, isso tudo embalado numa aparência de astro do rock aposentado. Ele vem de uma longa linhagem de São Cipriano, por isso carrega em seu sangue os estigmas de santo o que trouxe muito sofrimento para ele, começando pelos pais, Barrabás e Salomé Cipriano.

Eles tentaram aguçar os instintos santos do garoto através de tortura, além de protagonizarem orgias dignas de Sodoma e Gamorra na frente dele. Isso tudo só tornou Cipriano rebelde, não quis seguir os conselhos dos pais (que nunca ligaram para ele mesmo). A Sociedade de São Tomé, através de seu líder, Thomás de Torquemada, encontrou Cipriano e o tirou dos pais, fazendo-o padre e exorcista.

A Sociedade de São Tomé trabalha junto com o Vaticano para manter o sigilo desse mundo mágico que vive junto com “as pessoas normais”. Todos os seres mitológicos, mágicos e bíblicos de fato vivem, mas disfarçados, como deve ser. A interferência desses seres no mundo considerado normal deve ser discreta, Cipriano tem a missão de afastar aqueles que não seguem essa regra, isso significa trabalhar lado a lado com a polícia quando necessário.

Júlia Abdemi é uma policial já com certa carreira, hoje trabalha no administrativo, mas já teve seus dias no departamento de homicídios, saiu porque não conseguiu mais lidar com aquilo como rotina. Ela é mãe de Mariana, de sete anos, e ambas têm poderes mágicos, elas se comunicam com máquinas, qualquer uma. Júlia pode, de fato, entrar na rede. Isso não a impediu de ser cética, não seguia nenhuma religião, acreditava apenas naquilo que a ciência poderia explicar… Até conhecer Cipriano.

O exorcista foi posto em um caso macabro para a polícia, um pastor evangélico muito famoso, o Apóstolo Santana, havia sido raptado e sua execução estava sendo decidida pelo YouTube. As circunstâncias do crime (que veio a se tornar homicídio) era inacreditáveis, ele havia sido hipnotizado de alguma forma e algo o sugestionou a morder um de seus pulsos até a mão se desligar do braço. O cenário era dos piores imagináveis, escritura em sangue (feito pela própria vítima) em uma língua celestial, que depois se descobriu que era um versículo que não consta na Bíblia, mas foi de um acontecimento real.

Júlia, apesar de não trabalhar mais com homicídio, foi posto no caso junto com Cipriano devido a influência do Vaticano, pelas circustância, só que ela não sabia de nada até então. O excêntrico padre começou a trabalhar com a policial mesmo notando o ceticismo dela, aos poucos ele foi tentando a convencer que existia algo mais.

Outro caso surgiu, o de Verônica, médium que enganava seus seguidores com cirurgias espíritas. Ela se encontrava em ume estado deplorável, depois de ter se separado do poderoso marido, quem encobria as ilegalidades dela. Passou por um sofrido divórcio, ambos os filhos morreram misteriosamente e agora ela estava sofrendo de anorexia crônica, estava praticamente presa a uma cama e o anjo da morte (como ela chamou) foi terminar sua tortura, também em uma live pelo YouTube. Logo Júlia e Cipriano estavam recolhendo evidências que ligariam os dois casos, a primeira de todas era que Santana havia sido encontrado no sítio que pertencia a Verônica.

Houve ainda um terceiro caso, o do padre pedófilo Ítalo Nogueira. Ele já havia sido condenado por isso juridicamente, mas não foi expulso da igreja, apenas foi rebaixado, não celebrava mais missas e não poderia mais chegar perto de crianças, fazia apenas a limpeza do templo. Ele foi atacado dentro da Igreja da Penha, sua morte foi tão dolorosa quanto a dos outros, foi feito de estátua de sal enquanto o templo queimava em chamas, ou seja, morreu frito!

Unindo o que havia descoberto e quebrando algumas certezas que haviam, Júlia e Cipriano encontraram o possível responsável por tudo isso: Samael.

Samael tinha uns 16 anos, mas teve uma criação no mínimo diferente. Ele é o resultado de uma experiência de clone de um cardeal que havia encontrado material genético de um anjo nos escombros de Sodoma e Gamorra. Entre a ciência e a firmeza de seus ideias, ele conseguiu encontrar uma freira que aceitou gestar o “santo” e uma empresa que patrocinaria sigilosamente.

Empresa que consegue esconder ilegalidades ele iria encontrar onde? No Brasil, lógico, que não tem leis específicas para experimentos biotecnológicos nem fiscalização decente.

E foi nos arredores da capital do verão brasileiro, Rio de Janeiro, que Samael foi gestado e, desde então, ensinado que os líderes religiosos não pregavam o que era certo e que o Deus deles é piedoso demais com os pecadores. Na verdade o tal cardeal queria só um novo Papa, um líder humano que pudesse dar exemplos práticos de castigos para os pecados humanos, mas ele criou um garoto mimado que se achou o próprio Deus.

Samael abandonou o plano do seu patrocinador, uniu tudo da cultura pop de terror e do ódio que sempre lhe foi semeado. Aprendeu a fazer golens (constructos, bonecos de barro, marionetes que o esconderiam enquanto seu pode não chegasse ao topo) e começou a concretizar o seu próprio plano: castigar líderes religiosos pecadores, aqueles que enganaram usando a sua religião. As torturas deveriam ser públicas, porque ele queria arrastar fieis e essa era a forma de conseguir na era tecnológica.

Vendo que Júlia e Cipriano se aproximavam da verdade, Samuel resolveu atingir alguém mais próximo antes de continuar com o plano: Mariana. Ele sequestrou a menina dentro de casa (por um golem) depois que Cipriano se recusou a matar Júlia. O que Samael queria mesmo era forjar uma batalha entre ele e Cipriano, assim o seu público (fiéis) poderiam escolher quem era o messias. Ele conseguiu, mas o padre venceu… Infelizmente ele não conseguiu resgatar Mariana.

Impossível resumir essa história muito louca e muito bem feita! Não sou fã de terror, tanto que não consegui ler esse livro à noite, no dia que tentei quase não dormi… E isso mostra o quão o livro é bom.

No começo é um pouco estranho, especialmente para alguém nascida e criada no catolicismo, que frequentou a vida inteira um colégio da diocese (avalie aí quantas teorias da conspiração dá pra construir depois disso), mas aos poucos a história vai conquistando e pior, os argumentos do vilão começam a fazer sentido!

O objetivo é expor o quão hipócritas são alguns religiosos e a incredulidade daqueles que esperam que eles sejam punidos decentemente. Faz sentido que eles sejam punidos pela eterna ganância, seja por prazeres ou fortunas, assim como alguns serial killers conseguem convencer, mas os métodos são completamente equivocados.

A vingança neste caso vai muito além, Samael busca inspiração em passagens bíblicas, mas as transformava em algo brutal demais. A mensagem seria passada, mas não da forma correta, ele foi mais cruel do que Hamurab, que pregava a lei do “olho por olho, dente por dente”, foi além. Isso leva a uma reflexão séria sobre o que é ser bom, o que é ser temente a Deus e o quais as consequências disso.

Os personagens são tão bons, a descrição de cada um, fosse mágico ou humano, aproxima muito do leitor. Júlia parecia aqueles que já erraram muito na vida, mas que hoje tem os melhores conselhos, eu me sentiria segura com ela na força policial, apesar de seus erros. Cipriano é a própria agonia, cada característica adiciona uma forma de amar o odiar e odiar o amar, ele é próprio anti-herói sem ser anti-Cristo (o que poderia acontecer com ele facilmente). Samael e seus golens são assustadores.

Ah os seres mágicos, que delícia ler sobre cada um. Jezebel com suas orgias, Narciso (a gárgula) e seu jeito carioca de ser, o poderoso Saci Pererê (nada do que o Sítio do Pica Pau Amarelo ensinou), a mágica fada do dente, que era uma dentista (óbvio que seria, como ela lidaria com dentes), o dragão milenar Gi Jong, famoso negociador de antiguidades, etc.

A descrição dos personagens só não supera a das cenas do crime. Pela primeira vez eu não quis usar a minha imaginação, porque conforme ia lendo e construindo a cena mais assustada e enojada eu ficava. Todos meus anos de CSI me prepararam só pro básico, por isso ainda consegui começar a imaginar, mas quando ele começou a descrever até os odores preferi manter minha sanidade, além de uma boa noite de sono sem sonhos loucos.

Séria, minha mente é criativa demais pra imaginar descrições!

Levando em consideração tudo isso, digo que gostei de ter lido, de ser exposta a uma história sem “lugares comuns”. Não romances interrompidos, não é meloso, está cheio de piadinhas de humor negro, por vezes de mal gosto, mas fazem sentido no contexto.

Algo bem legal é ver algumas interferências do mundo pop e nerd atual. Júlia tem em seu jardim um stormtroopers lutando o Dart Vader lutando ao invés de anões de jardim, ela faz citações de clássicos de suspense e investigação do cinema, a narração sempre faz comparações com filmes e séries atuais e clássicos, dando um tom de humor a tudo.

Ah, não espere linguagem polida, é tudo cheio de gíria, tanto cariocas quanto nordestinas e nortistas (não entendi a ligação, mas reconheci quando alguém fala “égua”, que é bem coisa do Pará) e muitos e muitos palavrões. Para quem não é acostumado com esse tipo de linguagem pode ficar desconfortável.

Além de tudo, as passagens bíblicas são respeitadas e, depois de muito ler, podemos concluir algo que está bem óbvio, mas esquecemos: o errado não é o Deus ou os dogmas, mas quem o pratica de forma errada. Sabe a história do fã clube? Os fãs clubes de Deus geralmente extrapolam e isso é que está errado, não é ter suas crenças e religião.

O final do livro deixou espaço para uma sequência, não sei se haverá, mas tem tudo para ser ainda melhor. E sim, quero ler, apesar de todas as descrições… Leio de dia, não tem problema. Quero ver se Júlia perdoa Cipriano e se ele tem algum jeito na vida, apesar de ser um rebelde.

Parabéns Gabriel Tennyson, conseguiu que uma medrosa lesse algo tão impactante e ainda gostar!

Beijinhos e até mais.

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