Comprei o livro Justiça Ancilar sem querer. Como assim? Estava zanzando pela Amazon, olhando alguns lançamentos e, inadvertidamente, apertei o botão “compre agora com 1-clique”. Não me peça para explicar como consegui essa façanha. Antes de cancelar a compra, li o resumo e fiquei espantado com a quantidade e com a expressão dos prêmios que o livro ganhou. Convenci-me a deixar que o acaso triunfasse e não desfiz o meu erro. Não sou dado a esoterismos, mas também não deixo que as bruxas saibam disso. Fato é que o acaso tinha razão: era um livro que eu deveria
Justiça Ancilar não é uma ficção científica fácil. Ela é original em diversos pontos e esta originalidade cobra um preço. O leitor leva quase metade do livro para compreender e se acostumar aos parâmetros e ao contexto no qual é contada a história.
O livro é quase todo narrado em primeira pessoa por Breq, uma inteligência artificial inserida em um corpo biológico. Originalmente, Breq era parte de uma coletividade, gerenciada por uma nave de guerra, a Justiça Ancilar, de onde vem o nome do livro. Algo como uma companhia do exército que compartilha uma mesma mente. Similar, por exemplo, ao conceito dos Borg, da série Jornada nas Estrelas.
A nave Justiça Ancilar pertencia ao “Império Radch”, uma organização política totalitária, militarista, expansionista e estratificado em grandes casas familiares, que lembram tanto uma organização nobiliárquica medieval quanto o livro Duna, de Frank Herbert. O livro inicia 19 anos depois de a nave ser destruída, quando apenas um dos seus “desdobramentos” orgânicos, Breq, salva-se. A partir daí ela vaga em busca de vingança. Há características dos
clássicos cavaleiros solitários de westerns americanos, ou, antes, dos ronins de Kurosawa, vagando e enfrentando aventuras, enquanto anseiam por sua redenção pelas armas.
Na linguagem dos radchaai não há distinção entre os gêneros masculino e feminino, outra das boas ideias do livro. Você não identifica se o personagem é homem ou mulher, a não ser que ocorra a interação com personagens de outros planetas e culturas. Esta forma narrativa é bem mais fácil de desenvolver em inglês do que em português e gerou diversas dificuldades para o tradutor Fábio Fernandes. Para nossa sorte, ele se desincumbiu muito bem delas, conseguindo preservar a essência da ideia de Ann Leckie.
O “Império Radch” é comandado por Anaander Mianaai, uma ditadora que se desdobra em diversos corpos. Ela é o alvo da vingança de Breq, por motivos que, obviamente, não revelarei. Logo no início da aventura, Breq salva da morte a capitã Seivarden, que encontra por acaso, inconsciente, em um planeta ermo. A capitã havia permanecido congelada por mil anos, depois de uma punição disciplinar e sofre para se adaptar à nova realidade, acabando por se tornar uma viciada. Há uma tensão no relacionamento de Breq e Servaiden, que é utilizada como canal para que Ann Leckie conte um pouco da história do império e da sociedade dos radchaai. A trama conta com uma última e trágica personagem — a tenente Awn — por quem a nave Justiça Ancilar desenvolveu uma afeição intensa e que será o pivô dos fatos que levam à sua destruição.
Justiça Ancilar ganhou os prêmios Hugo, Nebula e Arthur C. Clarke, entre outros, o que, por si só, fala sobre a sua qualidade. Como todo o bom livro de ficção científica, retira o leitor do marasmo dos seus problemas cotidianos e força-o a refletir sobre novas questões.