Happiness: qual o preço que pagamos pela “felicidade”?
Happiness from Steve Cutts on Vimeo.
Happiness (Felicidade) é o mais interessante curta de animação que vi nos últimos anos. Crítico, sagaz e irônico, a animação aborda o dia de uma colônia de ratos que, na verdade, é uma interpretação sarcástica do cotidiano do homem moderno e sua busca por uma felicidade inalcançável.
Com um ritmo acelerado e ilustrações absurdamente lindas, Happiness mostra a rotina apressada e sempre, sempre insatisfeita dos raios, apresentados com comportamentos humanos (ou humanos apresentados como ratos). Tudo remete ao consumismo e à sede de bens materiais ou pequenas alegrias, aquelas que são voláteis.
Desde a pressa do dia a dia, passando pelas propagandas que nos levam a adquirir e consumir coisas que não precisamos, até uma crítica correta sobre os abusos para encontrar o prazer e a felicidade. Todos os excessos por nós cometidos são criticados e ironizados por Steve Cutts.
E o que levaria alguém a assistir um curta tão soturno? Simplesmente a redescoberta e o lembrete inteligente de nossos erros. Somos doutrinados a esquecer ou minimizar nossos erros e vícios, algo impensável em Happiness. Ao contrário, cada frame dessa animação é um soco no estômago para os que se identificam com as situações apresentadas.
O ritmo acelerado da história também copia a aceleração que somos obrigados a nos impor durante toda a nossa vida, algo péssimo por nos distanciar verdadeiramente da realidade e daquilo que importa, isto é, a necessidade de dar mais atenção àquilo que realmente interessa. Já repararam como passamos uns pelos outros como se fôssemos fumaça, mal damos atenção aos olhares das pessoas que cruzam nosso caminho, tal é o individualismo nos tempos de hoje. Isso está retratado de forma perfeita em Happiness.
A observação de Steve Cutts sobre nosso comportamento e como a mídia o influencia é digna de uma tese de mestrado. Ver cartazes de perfumes com ratos fortes (o estereótipo do macho alfa) e ratas magérrimas (o padrão de beleza feminino, ditado através das supermodels) é um alerta que não pode ser desprezado. Propagandas ocupam quase todos os centímetros disponíveis em áreas onde circulam incontáveis ratinhos. A velocidade com que transitam – sem se importar com quem esteja por perto – é outro fato preocupante, principalmente por caminharem quase como bois sendo encaminhados ao abate.
Cada imagem servirá para que você, espectador, ponha a mente para trabalhar. Não há como ficar indiferente ao que Happiness nos apresenta. Quer um outro exemplo? Ao ver os ratinhos seguindo por um labirinto cujas paredes são crivadas de propagandas – aparentemente de forma caótica, mas a ordenação está ali presente -, não pude deixar de associar isso à nossa rotina onde, via de regra, buscamos uma forma (ou caminho) para alcançar a felicidade. Temos a ilusão de sermos donos do próprio destino e que nossos prazeres e gostos são ditados por nós mesmos. Entretanto, reflitam, sequer possuímos a capacidade de escolher a programação da TV paga, já que há uma grade pré-estabelecida. E o que permanece? A sensação boa de que temos as rédeas do destino e de nossas escolhas.
Um outro visível alerta (que não damos atenção jamais) está na forma fácil com que trocamos “alegrias”. Hoje, minha felicidade está em ter um livro novo; amanhã, serei feliz ao adquirir uma TV de última geração; posteriormente, nada mais justo que ter a nova felicidade de comprar um carro zero km. Reparam que nossas parcelas de felicidade estão vinculadas ao consumo? Esse é um alerta que precisa ser considerado e respeitado. Perdemos a noção do quanto é vital um abraço de quem amamos, do poder de um beijo, do aperto de mão seguido de um sorriso sincero. Por que devemos ser felizes somente se estivermos gastando?
E o que dizer do apelo das bebidas? O néctar capaz de nos distanciar dos problemas, capaz de trazer um prazer único… e que vai aumentando gradativamente nossa dependência. Aos poucos o que era diversão e escape acaba se tornando um tormento, tanto para o usuário quanto para os que o cercam.
Já próximos do fundo do poço (ou do esgoto, no caso dos ratos), encontramos a solução em toneladas de medicamentos. Tomamos um medicamento para a pressão que, por sua vez, afeta, suponhamos, gradualmente os rins. Então, sabiamente, encontramos o alívio para os rins em outro remédio… e assim por diante. Quase sempre buscamos as soluções e prazeres mais imediatos e, infelizmente, isso tem um preço.
Repleto de alertas, imagens chocantes e um humor negro de altíssimo nível, Happiness é uma animação única, regada a uma trilha sonora perfeita e elaborada com extrema inteligência. Quer maior prova disso? Fiquei quase uma hora analisando minuciosamente uma animação de pouco mais de 4 minutos para produzir um texto de quase 800 palavras. E muitas outras poderiam ser escritas, porém prefiro que reflitam e encontrem outras lições e reflexões embutidas nesta obra-prima da animação moderna.