Fafá de Belém, a Filha do Brasil, em Porto Alegre

A memória musical do brasileiro, ao menos entre as décadas de 1970 até 1990, foi criada, em grande parte, devido a influências de trilhas musicais de novelas. Era uma época em que fazer sucesso era garantia depois de ter uma canção na seleção musical de um folhetim. Grandes artistas se destacaram e eram figurinhas carimbadas nessas tais coletâneas. Uma delas era Fafá de Belém. A cantora paraense, que começou a carreira tendo um repertório que zelava pela tradição de sua terra e abria leques para compositores do Brasil inteiro, no antológico disco Tamba Tajá, de 1976, com sua voluptuosa voz, logo entrou no mercado das novelas, estreando com Filho da Bahia em Gabriela, em 1976. E de lá não parou mais, com quase 30 canções nesse universo, Fafá resolveu fazer um show em homenagem a isso tudo. Intitulado Novelas, o show da filha do Brasil, pousou na nave sonora do Araújo Vianna em Porto Alegre. Segundo a cantora, que tem uma ligação de carinho forte com o Rio Grande do Sul, tem tudo para dar certo, porque a estreia de seu primeiro espetáculo, em 1975, foi na capital do estado. E o NoSet veio conferir essa viagem musical por trilhas marcantes, entre outros sucessos dos seus quase 50 anos de carreira, no último sábado.

Infelizmente, o público não era equivalente ao talento da gigante Fafá de Belém. Com nem meio auditório tomado, mas com um público ávido pela artista, o show teve início por volta das 21h30min. Com uma banda fantástica, de seis músicos, a artista surge como uma entidade no fundo do palco, com uma veste pesada e típica, Fafá começa com tudo, interpretando Indauê Tupã, do seu clássico disco de estreia, para delírio da plateia. Segue com seu sorriso marcante e animação frenética com Pauapixuna, do seu disco seguinte, numa volta às origens e segue com Filho da Bahia, sua primeira canção de novela do set. Mas o êxtase do início do show é marcado com Bicho Homem, de 1980, onde Fafá, com veemência, canta os versos chutar traseiro do ditador ou, no seu caso, de cancelador. Um começo arrebatador, onde a cantora dança, sorri, atua e o principal, mostra que sua voz poderosa continua impecável.

Após uma pequena pausa, conta sua ligação com o Rio Grande do Sul, seu amor pelo Brasil e segue com Dentro de Mim Mora um Anjo e colada, interpreta Sedução, essa, trilha da novela O Pulo do Gato, que junto com Foi Assim, do folhetim Te Contei, fecha mais um bloco.

Fafá então resolveu sentar e contar histórias, como boa proseadora, faz a plateia rir, obviamente não tem como não se encantar com o sorriso de gargalhada indefectível da artista. Fafá conta das suas heranças musicais, que como sua casa respirava música e lembra de uma tia que a ensinou a cantar Ontem ao Luar, de Vicente Celestino, onde ela sentada e com acompanhamento de violão e contrabaixo, faz uma emocionada versão, canção essa que foi trilha da novela A Sucessora. Fafá é visceral, não apenas interpreta, ela vive suas canções, se emociona, se entrega, e ao falar de Milton Nascimento e Chico Buarque levanta a plateia e, já de pé, inicia a  antológica Viola Enluarada, dos irmãos Paulo César e Marcos Valle. Poucas vezes vi uma interpretação tão linda, inebriante, que hipnotizou a plateia. Fafá brilha como poucas vezes vi artistas nessas mais de 50 coberturas no Araújo, em pouco mais de um ano. Um momento para sempre. Depois dessa linda passagem, Fafá relembra Sob Medida, de 1979, mostrando (ainda bem), que além de homenagear suas fases novelísticas, resolve entrar numa viagem sonora e temporal das suas grandes canções da vasta discografia. Chega o momento que Fafá sai de cena para a troca de figurino e a banda faz um número instrumental de primeira. Com grande influência jazzística, os exímios músicos esmerilharam seus instrumentos, com um número musical classudo e virtuoso. Fafá segue em 1979 e canta, ao lado do tecladista, a linda Que Me Venha Esse Homem, em mais uma comovente atuação da cantora. Ah, o figurino em que ela voltou, era um lindo vestido azul. Emenda então sua versão de Escândalo, de Angela Ro Ro, onde Fafá praticamente recria a já ótima canção, mais uma vez acompanhada pelos tecladistas. Segue com o super sucesso Bilhete, de Ivan Lins e Vitor Martins, que tocou muito no Brasil em 1982, na novela Sol de Verão, em mais uma visceral interpretação, canção essa que acabou dando início ao flerte mais popular da cantora e que ao anunciar a lindíssima Coração do Agreste, da novela Tieta, tem orgulho de dizer que sempre foi e será uma cantora popular. Mais um  momento único do show, tocante, mágico e inesquecível.

Segue o show com um momento de reflexão e de religiosidade, faz uma ode à fé, sem ligar à religião, e sim, à força do ser humano de acreditar, ensaia um início de Nossa Senhora, de Roberto Carlos, mas muda o jogo e canta o super sucesso Nuvem de Lágrimas, trilha da novela Barriga de Aluguel, canção que a transformou numa das primeiras cantoras de MPB a dar voz aos sertanejos, que começavam a voar no fim dos anos 1980. Nessa hora o Araújo estava de pé, com todo mundo cantando o popular refrão. O show segue com a canção Raça, seguida de Emoriô, mais uma das raízes nortistas da cantora, de 1981, e segue com o super sucesso Vermelho, onde mais uma vez a plateia de pé, dança e canta, tocada pelo talento e simpatia ímpar de Fafá. Meu Disfarce, outro flerte da cantora com o sertanejo, é uma das suas mais populares, fecha o show, ou supostamente fecharia o show, essa tendo o refrão cantado com emoção por toda a plateia, que hoje em dia não tem mais preconceito de ser brega, romântico e se emociona com músicas boas e inesquecíveis.

Fafá volta com outro vestido e emenda talvez seu sucesso mais popular, gravado em  1986, o clássico Memórias, aquela de tentar sorrir na despedida, que para Fafá deve ser fácil, com aquele lindo sorriso. Aí em diante, faz um homenagem com um pot-pourri, lembrando os cantores populares do Brasil, onde se encaixa com orgulho, segundo ela mesma e faz questão de lembrar que ser brega é bom demais. Emenda O Amor e o Poder , clássico de Rosana, Alma Gêmea, do Fábio Jr. e Aguenta Coração, de José Augusto, um golaço da cantora em uma homenagem arrepiante e condizente com o show, já que as três músicas embalaram trilhas de novelas de sucesso. O show termina com Fafá esbanjando voz e emoção no sucesso Abandonada, essa tocada apenas o trecho do refrão, onde ela se despede com alegria do palco, agradece, fala sobre democracia, sobre liberdade, sobre humanidade e manda um chute pro cancelamento, essa praga do mundo moderno, onde princípios estapafúrdios e ignorância fazem muita gente abandonar artistas, enfim, azar é deles.

O show de Fafá, com certeza, entra num pedestal dos melhores que assistimos nessas dezenas de coberturas. Um show repleto de canções inesquecíveis, uma banda com exímios músicos, mas não exagerados, uma das melhores equalizações de som que tivemos o privilégio de ouvir, e é claro, Fafá de Belém, sublime criatura, artista de verdade que esbanja sorrisos, comunicação, adora o palco e tem um talento e voz única. Ama a música, se emociona, é intensa, comove e se comove e nos apresenta, em quase duas horas, uma aula de música brasileira, sem preconceitos, onde a tradição, a modernidade e o popular andam de mãos dados e fazem o público sorrir. Show para guardar na retina, ouvidos e coração para sempre.

 Crédito das fotos: Vívian Carravetta

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