Crítica | Roma (Alfonso Cuarón)

Lançamento mais recente do cineasta mexicano Alfonso Cuarón, Roma chega ao catálogo da Netflix cheio de moral após receber aclamação mundial. O longa foi reconhecido por várias associações de críticos e venceu o Leão de Ouro no último Festival de Veneza. Nada muito incomum para uma carreira já bastante premiada, sendo o mais popular o Oscar de direção por Gravidade (2013). Mesmo se desconsiderássemos o peso dos reconhecimentos formais, é fato que o diretor é dono de uma visão autoral bastante perceptiva, seja em projetos mais intimistas, como no ótimo E Sua Mãe Também (2001), como nas incursões de grandes produções e franquias, como foi o caso de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (2004) – que é, inclusive, um dos filmes mais celebrados da saga.

Dessa vez, seu próprio passado foi decisivo. Há anos querendo realizar essa homenagem à sua convivência com a família quando criança, ele finalmente chegou numa conjunção precisa entre estética e temática pessoal. A primeira não é nenhuma novidade para quem conhece sua filmografia. Notório entusiasta pela técnica apurada – especialmente os planos longos –, suas obras são sempre um deleite visual que encanta qualquer espectador. Já a temática deixa um pouco de lado as aspirações sobre temas mais grandiosos e investe no afeto resgatado pela memória de sua infância no bairro Roma, na Cidade do México, na década de 1970. Mas o foco não é nele mesmo, e sim nas experiências da empregada doméstica Cleo (Yalitza Aparicio) e sua rotina numa casa de classe média alta em um período turbulento do país.

Logo no plano que abre o longa, o cineasta deixa claro que compreende muito bem os fundamentos do cinema como linguagem, especialmente no poder simbólico das imagens e nas poderosas metáforas de suas combinações. O azulejo sujo da garagem recebe aos poucos a água que limpa a poeira e os dejetos do cachorro, algo que representa não só o início do ciclo de trabalho de Cleo, como também será uma forma recorrente de representar o arco da protagonista e de sua patroa, Sofia (Marina de Tavira). Ambas impactadas pelas mudanças pessoais sob as quais serão submetidas ao longo de alguns meses, ganham complexidade no roteiro (também do diretor); uma a partir de um acontecimento pessoal que arrisca mudar sua estabilidade no serviço, a outra prestes a enfrentar uma crise no casamento que também afetará a dinâmica familiar, principalmente a dos filhos.

O mais interessante é que Cuarón sabe que o poder da narrativa visual é sempre mais envolvente do que que a exposição. Há muito pouco a se explicar na história, pois o significado emotivo para o autor é convertido na observação do dia a dia através de pequenos momentos que simbolizam os “comentários” pessoais e sociais. A abordagem vai desde de elementos mais corriqueiros até relações mais elaboradas. Veja, por exemplo, como apesar de os patrões jamais serem tratados como caricaturas (nem sequer de maneira julgadora), as implicações nas diferenças entre o lugar de cada um na escala social se tornam tão sutis que até parecem naturais: “Eu vou ser despedida!?”, pergunta Cleo logo após revelar uma informação pessoal à Sofia, temendo pelo futuro por já sentir o peso da culpa inconscientemente atribuída a ela, independentemente de ser ou não. O mesmo acontece quando vemos o carinho com que a personagem trata os filhos dos patrões serem retribuídos na mesma intensidade, mas com a condição implícita de que o equilíbrio entre seus papeis jamais seja prejudicado.

Essa representação intimista dos conflitos de classe tem o grande mérito de não se tornar especificamente um discurso político. O objetivo aqui é prezar a experiência de um ponto de vista de dentro para fora, usando, novamente, o discurso elegante da narrativa. Mostrar que Sofia dirige mal e constantemente batalha para estacionar o carro na estreita garagem da casa é bem mais cinematograficamente interessante do que tentar traçar um retrato explícito da sociedade mexicana nos anos 70 através de embates maniqueístas. Tão efetivo quanto, é usar as rimas visuais como uma progressão simbólica das expectativas da protagonista em relação a seu futuro: a imagem do líquido no chão espalhado pela xícara quebrada após o desejo de um feliz ano novo remete ao plano inicial, que é também resgatado por outra bela rima com o desfecho (sem spoilers).

Além de desenvolver como principal trama o lado pessoal, o diretor ainda consegue de forma significativa trabalhar outros temas mais abrangentes em segundo plano. Isso tanto no subtexto como literalmente, isto é, preenchendo a composição com o cenário social e político da época sem transforma-los no objetivo principal da trama. Com isso, é até surpreendente notarmos o quanto absorvemos dessa pequena parte da história da Cidade do México mesmo vendo tão pouco. Mérito do cuidado na composição e na montagem, do próprio Cuarón com Adam Gough, que produz alguns ótimos momentos no longa – com destaque para aquele em que, logo após um terremoto atingir a cidade, um plano que mostra recém-nascidos em incubadoras é substituído por cruzes fincadas num terreno localizado em um bairro mais pobre.

Esse cuidado com o fato de inserir tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo para tornar a experiência tematicamente enriquecedora se beneficiou na abordagem da direção de Alfonso Cuarón. Essencialmente contemplativo, o tom da narrativa se estabelece por longos planos que seguem os personagens e exploram o ambiente através de panorâmicas (movimentos verticais e horizontais com o eixo da câmera fixo) e, em menor escala, uma câmera que vaga lateralmente como uma observadora mais recuada (há poucos planos fechados nos rostos dos atores). O recurso torna a obra uma viagem mais lenta, que, por vezes, dá uma estagnada no ritmo e alonga desnecessariamente algumas sequências, mas se mostra a escolha perfeita para representar a quietude interna da própria Cleo.

Para fechar o senso estético do filme, o diretor também assina a fotografia, colocando seus anos de experiência em prática para aliar a pegada mais estática a um belo preto e branco bastante limpo e definido, que, mesmo com um contraste mais comedido (muito mais realista do que expressionista), consegue produzir planos visualmente espetaculares, tornando a jornada uma experiência sensorial bastante recompensadora. Ele mesmo, em entrevistas, disse que sempre imaginou o projeto assim desde quando começou a desenvolvê-lo anos atrás, talvez por achar que isso traduzia melhor o sentimento nostálgico da memória. Mas mesmo que ignorássemos isso, temos que reconhecer que o charme do preto e branco sobreviveu à história do Cinema.

Mas o mais importante para toda essa trajetória funcionar é a inesperada escalação de Yalitza Aparicio. A jovem é professora e jamais tinha sequer atuado em qualquer coisa. Grande parte da conexão com o arco de Cleo se deve às suas surpreendentemente genuínas reações e construção da protagonista. A atriz iniciante é extremamente verdadeira ao internalizar os conflitos da personagem na maneira como suas emoções se projetam para dentro na maior parte do tempo. O controle na forma como ela lida passivamente com os obstáculos não soa como inexpressividade, mas uma reação à opressão que a vida lhe impôs, sem que isso necessariamente tenha de partir de um núcleo específico da história. Essa escolha rende um resultado comovente ao aproximar a personagem do real e ao tornar os momentos onde ela finalmente desabafa em catarses memoráveis – o que resulta, por exemplo, em uma extraordinária sequência passada em um hospital que também coincide com um clímax temático que encontra força mesmo que em segundo plano.

Roma é um cinema poderoso em sua força imagética e temática. Embora sua trama seja despida de grandes revelações e reviravoltas, é parte de um certo tipo de obra que transcende o discurso direto e alcança um poder intimista que correria o sério risco de aborrecer caso estivesse nas mãos de outro cineasta. Felizmente, o resultado impressiona em sua forma e emociona em seu conteúdo.

Nota: 

Trailer

https://www.youtube.com/watch?v=ICR6YvcyyJc

Data de lançamento: 14 de dezembro de 2018 (2h15min)

Direção: Alfonso Cuarón

Elenco: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Diego Cortina Autrey, Carlos Peralta, Marco Graf, Daniela Demesa, Nacy García, Veronica García, Andy Cortés, Fernando Grediaga

Sinopse: Cidade do México, 1970. A rotina de uma família de classe média é controlada de maneira silenciosa por uma mulher (Yalitza Aparicio), que trabalha como babá e empregada doméstica. Durante um ano, diversos acontecimentos inesperados começam a afetar a vida de todos os moradores da casa, dando origem a uma série de mudanças, coletivas e pessoais.

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