Crítica: Pobres Criaturas

Confesso que deve ser uma sensação primorosa brincar de ser Deus ou criador. Por mais que a literatura e o cinema nos mostre que quem sofre dessa obsessão de poder, muitas vezes enlouquece e se dá mal, vamos combinar que é a sociedade, para o bem ou mal, que tem esse poder de controle e criação. Se somos todos loucos e perturbados, não posso afirmar, mas o cinema em 2023 nos presenteou com mais um estranho caso de como o ser humano gosta de interferir no mundo e como a criatura pode ter luz própria. Falo da fantasia surrealista de autodescobrimento e libertação que estreia essa semana nos cinemas, o ótimo Pobres Criaturas (Poor Things, 2023), com direção de Yorgos Lanthimos.

O filme conta, em uma Europa do século 19, a fábula de Bella Baxter. Criada através do corpo de uma grávida suicida, que fora acolhida pelo cientista Godwin Baxter (ele próprio um experimento, pois foi cobaia desde criança de seu pai, outro cientista), a jovem, com um cérebro novo, é obrigada a aprender tudo, desde falar, comer, andar, fazer suas necessidades básicas, mas aos poucos começa a ver que o mundo é muito maior que o castelo de God (Godwin). Pedida em casamento por um estudante de medicina, Max McCandless, ela até aceita, mas acaba se rebelando devido ao puritanismo do rapaz e foge com Duncan Wedderburn, que veio investigar quem era aquela noiva tão especial e se apaixona por ela. Juntos irão conhecer o mundo e Bella, nessa fuga em busca do autodescobrimento, acaba vendo que a vida do lado de fora é um verdadeiro barato.

Yorgos Lanthimos, através de um roteiro de Tony McNamara, adaptando o livro Poor Things, de Alasdair Gray, de 1992, consegue, sob uma nova perspectiva, acrescentar ao cinema mais uma vez a velha história de Frankenstein. Uma mulher como criatura não é novidade, pois o clássico A Noiva de Frankenstein, em 1935, já tinha trabalhado essa temática, em um filme até melhor que o clássico Frankenstein, de 1931, mas Yorgos trabalha com a premissa de uma rebeldia moral e busca hedonista da personagem. Bella Baxter, de uma boneca viva, pronta para ser um brinquedinho eterno do Dr. Godwin, resolve chutar tudo que tem pela frente e ser feliz. Algo que na conservadora era vitoriana era um sacrilégio, até para mulheres humanas, Bella resolve ir contra a corrente e revolucionar seu mundo, com sua inocente sinceridade, a descoberta dos prazeres do corpo, das viagens, das culturas e o principal: por mais que os homens tentassem controlá-la, ela nunca se prendeu a nenhum deles, nem seu “pai”, seu noivo e seu amante, pois fazia o que dava na cabeça com seu libertário pensamento. Uma cena ótima é quando depois do sexo com Duncan, ela na cama, pergunta pro parceiro: por que as pessoas nao fazem isso o tempo todo?

O filme também foge um pouco das convenções clássicas do gênero por abandonar aquela estética sombria e gótica, trocando por uma luminosa fotografia, viva e cenográfica, dando o tom vibrante à fantasia surrealista. Um filme que Tim Burton com certeza gostaria de fazer, mas jamais chegaria ao resultado de Yorgos. Com artifícios como zooms repentinos, câmeras perturbadoras em estilo olho de peixe, uma fotografia caprichada em preto e branco, que conforme a trama vai evoluindo e a personalidade de Bella crescendo e mudando, se torna num bem acabado colorido. A trilha sonora também pontua com instrumentos com agudos cortantes e melodias dissonantes o bizarro cenário, mas nunca sendo uma experiência sonora perturbadora. Referências a clássicos filmes dos anos 1950, 1960, quando a Hammer comandava o gênero de horror, os já citados Frankenstein e suas sequências e até mesmo o clássico Monstros, de 1932.

Emma Stone, como Bella, nos apresenta o melhor papel de sua carreira. Em um papel difícil, Emma se entrega numa soberba atuação, desde os primeiros passos da criatura, na fase de aprendizado infantil até sua libertação das amarras gerais da sociedade. Papel forte e intenso, não se importando com a nudez, diga-se de passagem, nada desnecessária, por mais que alguns possam achar de mau gosto ou misógino. Emma se entrega de uma maneira cativante e imortalizou no cinema essa inesquecível personagem que é Bella Baxter. Forte candidata ao Oscar de melhor atriz, e ao meu ver, a preferida. Willem Dafoe, com o rosto talhado em uma soberba maquiagem, também está como sempre muito bem, como Godwin Baxter, cientista sem escrúpulos que em nome da ciência faz seus bizarros e amorais experimentos, perfeito como criador de Bella. Mark Ruffalo também está ótimo como Duncan Wedderburn, no início um liberal companheiro de aventuras da garota mostrando as alegrias de um vida livre, mas depois decaindo, como todo o homem da época, num ciúme e desejo de dominação doentio.

Pobres Criaturas é um conto vitoriano, que ao contrário da maioria das convencionais adaptações trevosas que retratam a época, exala brilho, luminosidade e ainda diverte. É um filme de autoconhecimento, descobertas e libertação. Um petulante confronto contra padrões de uma era castradora e machista, que só na imagem de alguém com corpo de uma mulher, mas uma cabeça jovem e aberta à novidade, poderia bater de frente, a sua maneira, aos padrões rígidos de uma sociedade que no fundo era de plástico e vulnerável. Um filme extremamente bem construído, marcante e que nos apresentou ao cinema  Bella. Personagem que prova que arriscar, abandonar o óbvio e buscar o prazer é uma necessidade humana. E que mesmo com um mundo deveras controlador, às vezes uma coragem ingênua e  decidida, de partir, recomeçar e experimentar  pode ser a chave para a satisfação plena e pessoal, já que nem todos tem uma nova chance como Bella teve, para isso.

 

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