Revisitando Clássicos: Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças

Uma certa canção da música popular brasileira (a verdadeira, não aquela da sigla) dizia em versos entoados quase como prantos: “Agora / Que faço eu da vida sem você? / Você não me ensinou a te esquecer / Você só me ensinou a te querer / E te querendo, eu vou tentando te encontrar”. A música de Fernando Mendes, que depois ganhou ar de cult na voz do onipresente Caetano Veloso e fez parte do filme Lisbela e o Prisioneiro, poderia resumir o drama que o casal Clementine e Joel passaram no hoje cult Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças.

Ninguém ensina ninguém a esquecer e nem mesmo a ciência ou a tecnologia podem evitar o querer e a eterna busca por lembrar a pessoa que nós amamos, por mais que as lembranças possam ser de uma amargura das mais difíceis de engolir. Esse instigante filme completa 20 anos em 2024 e o Revisitando Clássicos revive esse tumultuado romance nas linhas abaixo.

Não podemos falar sobre O Brilho Eterno… sem começar pela brilhante mente do roteirista Charlie Kaufman. Um dos roteiristas mais inventivos do século 21, já tinha nos presenteado com dois roteiros sensacionais, como o surreal Quero Ser John Malkovich, de 1999, e o ótimo Adaptação. Kaufman era aquele caso raro em que um roteirista gerava mais expectativas que um diretor. Mas no caso, o francês Michel Gondry resolveu juntar forças com Kaufman, depois de descobrir que um artista contemporâneo seu, Pierre Bismuth, realizou um experimento artístico em que mandava bilhetinhos para pessoas diversas dizendo que tinham sido apagadas da mente de algum conhecido. Gondry, fascinado, lançou a premissa para Kaufman, que misturando ciência, psicanálise, vivência, traumas e sentimentos, criou a famosa trama de amor de Joel e Clementine.

O casal se conhece, se apaixonam, vivem juntos, se amam, mas a incompatibilidade, falta de paciência, amor (e por que não?) egoísmo dos dois levam à ruína o relacionamento. Aí surge a empresa ou clínica Lacuna, que promete apagar da mente das pessoas quaisquer resquícios de uma memória que possa causar dor e sofrimento. Clementine, depois de mais uma briga, resolve fazer esse tratamento e apaga de vez Joel de sua vida. Este então desesperado, resolve fazer o mesmo e deletar para sempre Clementine. Só que os resquícios de um amor mal resolvido não podem ser apagados como lápis com borracha e Joel tenta manter até o fim sua amada em algum canto escondido do seu cérebro.

O  título da película surgiu de um verso do poema De Eloísa para Abelardo, escrito pelo inglês Alexander Pope em 1717, inspirado no real e  proibido relacionamento de Heloisa de Paráclito e Pedro Abelardo. Ela é uma freira, ele um teólogo. Fruto do relacionamento tiveram um filho, mas a sociedade não perdoou e ao descobrirem o caso, ele foi castrado e ela trancafiada num convento. A frase em questão era: “Feliz é a inocente vestal. Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida. Brilho eterno de uma mente sem lembranças”.

E esse brilho, com perdão do trocadilho idiota, faz o filme brihar, contando com inspiradas atuações. Jim Carrey está excelente, num papel quase soturno de um cara sem graça, sério e com uma vida quase banal. Impressiona o talento do ator, que anos antes já tinha virado a chave com O Show de Truman, mas aqui se mostra maduro, profundo e se despedindo totalmente do palhaço que o fez famoso. Kate Winslet, como ela mesmo fala, parece que se tornou um Jim Carrey, abandonando as pomposas e contidas atuações de sua carreira para dar vida à reluzente e colorida Clementine, com seu bom humor e despojamento. O que poderia ser aquele clichê de sempre, de um casal improvável brotando uma fogosa paixão, aqui é salvo pela atuação dos dois protagonistas, que rendeu uma indicação a Kate. Mas todo o elenco de apoio é ótimo, como Tom Wilkinson, como o antiético Dr. Howard Mierzwiak, responsável pelos procedimentos, Kirsten Dunst, como a secretária da Lacuna Mary Svevo, ela mesmo uma paciente do tratamento que tem um relacionamento com o programador Stalley Fick, Mark Ruffalo em ótimo papel. Completa o time Elijah Wood, como Patrick, que através dos experimentos resolve conquistar Clementine.

Michael Gondry nos dá uma aula de direção, contando de uma maneira totalmente picotada a história, com imagens quase alucinantes, com destaque aos momentos em que a memória de Joel vai se apagando ao poucos, rostos sumindo, paisagens evaporando e momentos se despedaçando de vez da sua vida. Tudo isso com uma montagem (vencedora do Oscar) incrível, com cenas feitas em primeiros takes, planos sequenciais de tirar o fôlego e a liberdade dos atores de improvisar. Conta que Gondry deu total cartão verde às atuações e só Jim Carrey seguia à risca o que estava escrito.

Momentos memoráveis, como a cena do casal deitado num lago de gelo, já entraram no quesito cenas emblemáticas da sétima arte. Os cabelos de diversas cores de Clementine também (a atriz usava perucas, já que teria que gravar num mesmo dia três cores diferentes de melenas), além de frases como “Eu queria morrer agora, estou tão feliz, estou exatamente no lugar onde eu queria estar”.  Ou até a citação de Nietzsche: “Abençoados os que esquecem, porque aproveitam até mesmo seus equívocos” ou aquela mais marcante: “Eu não consigo me lembrar de nada que não tenha você”.

Na época de seu lançamento, Brilho Eterno… fez um grande sucesso, apesar de críticas de alguns que diziam que não entenderam bulhufas do filme, com seu ritmo intenso, atemporal, desmembrado e aberto a  inúmeras interpretações. Hoje, passados 20 anos, o revendo, continua instigante e basta apenas abrir a mente e o coração para entender a nem tão complexa história que uns pintavam ser. É um filme de amor, de como surgem e acabam os relacionamentos, uma coisa tão comum em qualquer ser humano. Desde o cerne de tudo, o brilho nos olhos e juras eternas, até aquelas pessoas que tu daria a vida para se tornar um estranho na vida delas.

O rompimento de relações é sempre uma tentativa de esquecimento, de enterrar o passado. No filme, Dr. Howard, através da alta tecnologia, prometia em um sono profundo apagar uma vida, mas isso cada vez mais ocorre sem tratamento ou clínicas fictícias. O rompimento gera uma necessidade de esquecer e retomar, por mais que os fantasmas da vida sirvam como gatilho para ativar lembranças. Mas no filme se prova que por mais que Clementine e Joel tentaram deletar sua vida em casal, sempre há alguma coisa que sobra, uma memória, uma frase, um olhar, e no caso deles, uma vontade de ficar juntos. E vamos combinar, por mais que fosse tão prático e rápido tirar o pior, ou o que não queremos mais lembrar de nossas vidas em apenas uma boa dormida, tiraríamos o mais importante de tudo: a experiência e a vivência, que só com a vida que nós construímos pode moldar nosso caráter e nossa força de superação. Cada pedra no caminho valeu, cada tombo e cada momento estão aí para serem ou lembrados, ou esquecidos, mas com o direito de às vezes termos o prazer que só nossa mente pode nos dar, que é a lembrança.

Passados 20 anos do seu lançamento, Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, além de passar toda essa mensagem de valorização e direito de recordar, funciona muito bem até hoje. Ele não envelheceu praticamente nada, é a prova que a junção de um diretor promissor, um roteirista genial, um elenco e atores (principalmente Jim Carrey e Kate Winslet) que se doaram e tiveram liberdade de atuação em um filme pouco convencional, que consegue quebrar linearidades óbvias e em nenhum momento se torna confuso ou pretensioso demais, podem ser ingredientes básicos da construção de um pequeno clássico. Digo pequeno por às vezes não podermos, em 20 anos, dar o valor necessário para uma obra, mas que no caso dessa, sem dúvida alguma, já entrou pra história do cinema, merece ser revisitado (procurem em streamings e revejam, cada vez que o assistimos pescamos mais algum detalhe e temos uma nova percepção da maravilhosa história). Em uma prova que uma história de amor pode ser desconstruída com muita criatividade, transformando o óbvio cotidiano e as angústias básicas de um relacionamento sem perder a essência que move o ser humano desde sempre que é a paixão, o amor e o fim de tudo isso, ou quem sabe, um  recomeço…

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