Crítica: Os Fantasmas Ainda se Divertem – Beetlejuice, Beetlejuice

Existem algumas coisas na vida que não devemos profanar ou simplesmente mexer, como o passado. No cinema essa máxima tem que ser levada mais a sério, tamanhas refilmagens, reboots, prequels (ah, esses nomes…) e sequências que literalmente mancham o legado de um grande filme. Quando Tim Burton resolveu, 36 anos depois, criar uma continuação para um dos filmes mais icônicos dos anos 1980, desconfiei demais, isso que estamos falando de Tim Burton, e o filme é dele. Tivemos que esperar quase quatro décadas para podermos conferir a sequência do fantástico Os Fantasmas se Divertem (Beetlejuice, 1988), que bagunçou o cinema em 1988 e apresentou ao mundo o excêntrico e ultra peculiar mundo do diretor. Essa sequência, com o comando dele mesmo, estreia nesta semana, numa das películas mais aguardadas de 2024, Os Fantasmas Ainda se Divertem (Beetlejuice, Beetlejuice, 2024).

Passados mais de 30 anos dos acontecimentos do primeiro filme, hoje Lydia é uma médium famosa que tem um programa de televisão de sucesso, em que desvenda mistérios do além. Devido a uma tragédia familiar, precisa voltar a Winter River, onde encontra Delia, sua madrasta. No caminho, elas ainda buscam Astrid, a filha adolescente e aborrecida de Lydia. Em paralelo, no mundo dos mortos, Betelgeuse, hoje um burocrata comportado, tem sua vida bagunçada com a chegada de sua ex-mulher e Delores, que promete vingança contra ele e sofre com o encalço do investigador e ex-ator de filmes Wolf Jackson. Beetle então precisa de uma maneira de se livrar das ameaças do além e provoca a jovem e cética Astrid, que descobre o famoso porão da casa dos Deetz, que pode libertar o aloprado bio exorcista e bagunçar mais uma vez a vida da família.

Tim Burton é daqueles casos hoje em dia raros, em que vamos para o cinema para ver o filme do diretor, e não o filme. Com uma marca extremamente pessoal, tanta na técnica de filmagens, histórias mirabolantes, intercalando um universo sombrio com cores vibrantes, imagens expressionistas e feitas de maneira orgânica, o circo do absurdo de Tim costuma encantar, como nos encantou em 1988, apresentando pro mundo um dos personagens mais esculachados e pitorescos do cinema, o Betelgeuse.

Só que com Os Fantasmas Ainda se Divertem, parece apenas provocar um sentimento de nostalgia, num belo espetáculo de som e imagens, mas que carece de um roteiro mais robusto. Temos ali os velhos elemento do filme, a casa assombrada de Winter River, a maquete, o mundo dos mortos, que continua divertido e sarcástico, e com Jenny Ortega temos quase uma nova Winona Ryder, quase 40 anos depois, e com a sorte de termos uma Winona Ryder no filme. Mas todo esse artifício que provoca emoção e saudosismo são insuficientes para criar uma história que cative o  espectador.

Tudo ali é quase que uma repetição da fórmula de 1988, só que com uma roupagem e uma alvoroçada montagem dos tempos atuais. Se o primeiro explora o humor e imagens onde o bizarro, construído com incríveis maquiagens e efeitos de verdade, surpreendia e dava risada, nesse segundo mostra um lado mais sombrio de Tim Burton, principalmente nas tomadas do universo dos mortos, mais sombrio e repugnante, mas que contrasta com divertidos  musicais (tem dois que são impagáveis, um com a música Right Here Waiting e outro com a grandiosa Macarthur Park) e piadas curtas e visuais provocando às vezes boas risadas, apesar de forçar a barra no excesso. Outro grande problema do filme é o excesso de personagens. O núcleo familiar das mulheres Deetz funciona muito bem, mas o desperdício dos personagens de William, Dafoe o ex-ator que investiga as condutas suspeitas do outro lado, Monica Bellucci, Delores a ex-esposa de Betelgeuse, com sede de vingança, e de almas e o namorado estranho de Astrid, que são escanteadas de uma maneira tão ligeira que parece que o diretor e os dois roteiristas não sabiam o que fazer com tanta subtrama na condução do filme.

Mas é claro que o filme é de Michael Keaton. O ótimo ator tem mais participação que no primeiro filme, e se tem um ínicio comedido, acaba aloprando cada vez mais no filme com seu humor ácido, arrogância característica e situações de horror cartunesco. Betelgeuse é o verdadeiro protagonista e é responsável por carregar o filme nas melhores passagens. O time de mulheres Deetz também não decepciona, Winona Ryder está excelente como a Lydia amargurada pelo luto e atormentada pelos fantasmas, mesmo que seja uma profissão rentável. Tem um  namorado de se desconfiar e sofre com seu xerox do passado, a filha Astrid, Jenna Ortega, perfeita para o papel, que assim como a mãe nos anos 1980 era uma garota, como os estadunidenses gostam de dizer, esquisita e super rebelde. E destaque para Catherine O’Hara, que já brilhou no primeiro e repete magistralmente na continuação.

Então como um filme que cria uma eficiente atmosfera repaginada do primeiro, tem um elenco de atores fantásticos, um personagem icônico e zombeteiro, trilha sonora apurada e os efeitos especiais e visuais com um mundo e um outro mundo à parte (às vezes lembrando o clássico O Gabinete do Dr. Caligari) e com a mão de um gigante realizador que é o Tim Burton, pode não ter tido o resultado esperado? A resposta pode ser, como escrevi acima: um cult desse tamanho talvez não precisasse de uma continuação e qualquer projeto, por melhor que fosse, não iria nos causar a comoção que em 1988 causou no mundo do cinema e apreço do público. Além disso, se o primeiro filme primava pela simplicidade e originalidade, Os Fantasmas Ainda se Divertem, acaba recheando demais uma simples história de casa mal asssombrada, empilhando personagens, subtramas mal amarradas, efeitos especiais em demasia e pastiches musicais (por mais que alguns funcionem) a todo o momento, mas mesmo assim com todos esses mirabolantes exageros, o filme carece mesmo é de uma boa história, uma trama original que prenda o espectador e surpreenda. O que vimos é uma versão 2024 de um clássico de 1988 onde a nostalgia vai provocar suspiros pela proposital utilização de velhas fórmulas, mas que vindo de Tim Burton, acaba se tornando muito pouco.

 

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