Crítica: Ferrari

Se existe algum carro, que até mesmo pessoas que fazem pouco caso, pode ser considerado um ícone, tanto como automóvel em si, como marca, status (e por que não?) poder, é a Ferrari. Desde o logotipo e seus modelos clássicos de macchina de cor vermelha, capricho visual e motores potentes, a montadora italiana tem um local especial na cultura pop. Mas quem é o mentor por trás desse império automobilístico? O veterano e genial Michael Mann, através de uma cinebiografia, arrisca contar em película a vida de Enzo Ferrari, o visionário engenheiro, que com sua esposa, criou esse império da velocidade. Com o nome Ferrari (idem, 2023), é uma das estreias da semana nos cinemas brasileiros.

O filme conta um recorte da vida de Enzo, mais precisamente por volta de 1957. Na época a montadora estava em crise, mas a obsessão de Ferrari em criar carros velozes e bater recordes continuava insaciável. Sua vida pessoal estava em frangalhos, sua esposa e sócia cada vez mais descontrolada, o trauma dos dois pela perda do filho precocemente destruía aos poucos o casamento. E para completar o drama a la italiana, Enzo mantinha sua amante e seu filho de 11 anos com ela, escondidos dos holofotes, mas esse segredo estava com os dias contados. Para não entrar em ruína, teve que enfrentar a fúria da esposa e apostar tudo numa veloz corrida tradicional, a Mille Miglia, que poderia ser a vitrine perfeita para os carros esportivos da Ferrari ganharem fama, serem comercializados e salvarem a, na época, caótica empresa.

Michael Mann acerta em cheio. Ao invés de nos mostrar a vida de Enzo Ferrari, usa um pequeno corte importantíssimo da trajetória do lendário engenheiro. 1957 é o ano escolhido para mostrar o quanto era obcecado por velocidade, sucesso e como sua vida dupla estava acabando com ele. Com um roteiro de Troy Kennedy Martin, inspirado no livro Enzo Ferrari – The Man and Machines, de Brock Yates, o filme, nas suas mais de duas horas, não procura nem idolatrar e muito menos demonizar Enzo. Um cara que muitas vezes parecia desumano por exigir demais dos seus pilotos em testes de velocidades, um tanto insanos e mortais, obcecado por resultados, ao mesmo tempo era devastado pela morte do seu herdeiro, mesmo com toda a racionalidade matemática que tinha em sua vida. Fato que destruiu seu casamento e fez sua esposa Laura nunca mais ser a mesma, o culpando pela fatalidade e depois a perturbando de vez com a descoberta da outra família de Enzo. 

Toda essa ambição e ousadia contrastava com um homem machucado pelo luto e que só conseguia conforto, um tanto egoísta, com o outro amor e seu outro filho. Outro golaço do filme é saber intercalar esse dramalhão italiano com exuberantes cenas de ação. Os testes dos carros, com um trabalho de som esmerado, onde parece que estamos de carona nos velozes carros, é outro ponto alto do filme. A cena do acidente de um piloto promissor logo no começo do filme é impressionante pelo realismo e impacto visual. Mas a reconstituição da tragédia na corrida Mille Miglia, onde um pneu furado fez a Ferrari de Alfonso de Portago literalmente ir ao ares e levar mais nove espectadores da prova na beira da estrada é uma das mais impressionantes que vi recentemente, com o impacto do carro levando uma a uma as pessoas, num silêncio perturbador, devastador e chocante. Uma aula de direção e cinema de ação.

Adam Driver parece que cada vez mais está acertando o tom de suas interpretações. Se não é brilhante, ao menos cria uma personalidade forte ao Comendador Ferrari, mesmo sob pesada maquiagem para causar o envelhecimento no ator. Hoje já podemos considerar Driver um ator quase completo. Penélope Cruz está ótima como a magoada e traída Laura Ferrari. A cada cena que surge a personagem é uma bomba a explodir, com pitadas, é claro, de estereótipos de mulheres italianas, mas em nenhum momento é levado para o caricato e sim para o realismo, humano e visceral. Uma gigante atuação. Shailene Woodley, como a “outra”, Lina Lardi, está discreta no papel, pouco adicionando ao drama existencial de Enzo. E vale destacar no elenco também o grande Patrick Dempsey, como o piloto Pierro Taruffi.

Ferrari, de Michael Mann, em tempos de cinebiografias cretinas e sem sal, é um ótimo filme, que não tem pretensões de criar mártires ou crucificar vilões, apenas nos conta, em um feliz recorte, os dramas pessoais e ambições de um homem que foi um gênio e que soube como poucos transformar uma montadora de carros num império de luxo e velocidade. E o filme não precisa mostrar isso, apenas com um verão, o de 1957, é o suficiente para nos ajudar a compreender qual foi a dimensão do homem e industrial Enzo Ferrari.

Mais do NoSet