Costumo dizer que no meio artístico temos um sem-número de talentosos cantores, músicos, atores, pintores, realizadores, mas artistas, aqueles que transcendem o talento de seu campo de produção para uma gama de explosão criativa, temos poucos. Logicamente que todos os não artistas são geniais no que fazem, porém alguns conseguem sair do seu meio comum e seguro para explorar novos limites. Caetano Emanuel Viana Telles Veloso é um desses, Caetano é um artista na definição precisa da palavra. E como é bom ver esse artista. Sexta feira, dia 8 de abril, Caetano apresentou seu espetáculo novo para o público gaúcho no Araújo Vianna. O primeiro de uma série de três apresentações, todas com ingressos praticamente esgotados.
Depois de nove anos, Caetano apresenta seu primeiro show solo (seu último foi da turnê Abraçaço de 2013). Intitulado Meu Coco, Veloso em tom quase autobiográfico, faz um balanço intimista de sua carreira. Com um belíssimo cenário de Luiz Henrique Sá, a partir de uma obra nunca finalizada pelo finado Hélio Eichbauer, Caetano desfilou vitalidade e competência no alto dos seus 79 anos, para um público renovado. Parte do show vem do seu último trabalho, Meu Coco, de 2021, mas nas mais de duas horas, o baiano mesclou momentos de intimismo musical, explosão rítmica, contou causos e histórias e encantou quem esteve presente.
Entrando no palco com um figurino todo branco, tal qual uma entidade, acompanhado de mais uma competente, mas discreta banda, com Pretinho da Serrinha, Thiago da Serrinha na percurssão, Kainã do Jejê na bateria, Lucas Nunes na guitarra, Rodrigo Tavares nos teclados e o grande Alberto Continentino no baixo, Caetano, empunhando seu violão, começa o show com a belíssima Avarandado, de João Gilberto, que teve apenas gravação da irmã Bethânia. Depois embala com as novas, a irregular Meu Coco e a provocativa Anjos Tronchos. É claro que é com Sampa que a plateia se solta realmente, sucesso de 1978 com um belíssimo arranjo, faz o Araújo cantar e dançar. Muito Romântico, da mesma época, que fez sucesso também na voz do Rei Roberto, ajuda a dar aquela embalada na plateia. Não Vou Deixar, do novo disco, talvez umas das mais fracas desse, dá aquela esfriada, mas com You Don’t Know Me, do disco Transa, que completa 50 anos neste ano, o Araújo veio abaixo. Trilhos Urbanos, com um incrível e repaginado arranjo, mantém a toada de sucessos na boca do povo, que esfria com a mais desconhecida Ciclâmen do Líbano. Entre uma canção e outra, Caetano relembra e homenageia os músicos e bandas que fizeram parte de sua vida, como a banda que fez o disco Transa em Londres, Jaques Morelembau, a Banda C, e principalmente, a Outra Banda da Terra, grupo que acompanhou o artista na sua fase mais popular, e digamos odara, no fim dos anos 1970 e 1980, que ficou imortalizada na canção de mesmo nome da banda, onde Caetano faz uma brincadeira com o sotaque do r puxado do interior de São Paulo.
Com as ótimas Araçá Azul e Cajuína ele abre alas para, talvez, o sucesso que mais empolgou o público, a maravilhosa Reconvexo. Com um arranjo caprichado pela percussão, a canção fez o Araújo literalmente tirar o pé do chão, ou melhor, o povo levantar-se da cadeira. Segue o baile com a linda Enzo Gabriel, do disco Meu Coco, fazendo uma reflexão de o quanto essa nova geração pode salvar esse velho e machucado mundo. Leãozinho, sucesso certeiro de 1977, fez o público cantar junto. Itapuã veio em sequência, canção do disco Circuladô, uma homenagem a sua Bahia querida, também poderia surgir como uma homenagem ao irmão de vida, Gilberto Gil, que era empossado no mesmo dia na Academia de Letras Brasileira. Lembrando, assim, as belezas da terra e do passado dos dois, nem tão mais novos baianos, que encantam o Brasil faz gerações. Pulsar é mais uma das intervenções artísticas de Veloso ao musicar um poema concretista de Augusto Campos, que dá uma leve esfriada no público. Mas apenas leve, porque ele e a banda emendam em sequência a soturna A Bossa Nova é Foda, Baby, sucesso na voz de Gal, Menino do Rio, sucesso na voz de Baby, na época Consuelo, Sem Samba Não Dá, sucesso na sua própria voz, onde faz uma homenagem às novas vozes da cancioneiro brasileiro, e a linda Lua de São Jorge, encerrando o roteiro do show.
Para o bis Caetano surpreende com Mansidão, música dele, que nunca tinha gravado ou apresentado, cantada apenas por Jane Dubok, numa linda versão nos anos 1980. Com Odara ele faz o auditório mais uma vez dançar e pensar que, nem que seja por alguns minutos, o mundo pode ter seu momento odara, mesmo com tanta pouca joia rara nesse confuso planeta. Caetano encerra o espetáculo com a bonita e discreta Noite de Cristal, do último disco. Espetáculo esse, daqueles de valer o ingresso. Caetano Veloso é daqueles raros artistas que pode se dar ao luxo, e faz questão, de apresentar algo novo para o público. Por mais que ter quase um terço de um show de canções de seu último disco, possa ser cansativo ao espectador ávido por sucessos, não podemos negar que essa ânsia de novidade, essa vitalidade e explosão criativa são marcas do Caetano, nosso camaleão antenado da música brasileira, hoje uma entidade, gostem ou não gostem. Não sei o que seria de um Brasil sem as múltiplas faces e ousadias de Caetano, que com o show Meu Coco, surpreende mais uma vez e fez Porto Alegre dormir mais alegre.
Crédito das fotos: Vívian Carravetta