Blitz em Porto Alegre

Uma coisa ninguém pode questionar: se em 1982 um certo compacto de uma banda com a cara da zona sul carioca, com sua irreverência, pitadas brazucas de new wave, teatralidade e muito rock and roll não tivesse estourado, não abriria a porteira para uma nova geração de bandas que daria voz para um som de uma geração, ou melhor, não abriria caminhos para o Brock. Claro que falo da Blitz, que sábado armou seu circo delirante no Araújo Viana, comemorando 40 anos de banda, e logicamente, do Aventuras da Blitz, disco fundamental no rock brasileiro. Muitos podem até reclamar que a banda hoje é um pastiche, que mais correto seria chamar de Evandro Mesquita e Banda, e que desses 40 anos, os últimos 36 anos foram irrelevantes. Mas tente explicar isso ao ótimo público que quase lotou o auditório, sedento por ouvir o que melhor a banda produziu naqueles quatro ou cinco anos mágicos.

Com uma formação que ao menos há sete anos está junta, Evandro Mesquita, Juba e Billy Forghieri, seres mitológicos do rock tupiniquim, agora junto com o baixo estalado e furioso de Claudia Niemayer, Nicole Cyrne e Andréa Coutinho nos vocais, a guitarra técnica e pesada de Rogério Meanda, numa noite fria de junho, esquentaram a plateia com sua intro Blitz Cabeluda, e lembraram os 40 anos do primeiro show da banda, em janeiro de 1982 no Circo Voador, com um público extremamente animado.  Com uma sonoridade impecável, emendaram sucessos, como o excepcional Weekend, com um arranjo mais moderno, com o baixo pulsante de Claudia e a batera do incrível Juba, um dos maiores bateras do Brasil. Usando e abusando de hits de mais de 30 anos, a banda seguia o baile com A Verdadeira História de Adão e Eva, Betty Frígida (do bordão inesquecível do Calma Beth e do Rony Rústico) e Dali de Salvador, mas não esquecendo de incluir canções fora da época áurea como a hilária Eu, Minha Gata e Meu Cachorro e a música cara do Evandro, Saquarema, que fala da praia do Rio, refúgio de sua vida zen. Evandro Mesquita esbanja talento, vitalidade e muita simpatia. Com seu carioquês irresistível e um diálogo aberto com a plateia, ele tem uma facilidade e química de comunicação com a galera que é encantadora.

A casa praticamente veio abaixo com Mais Uma de Amor, a popular Geme geme, levantando o Araújo de vez. Aliás, nem precisava ter um hit dessa grandeza pra levantar a plateia, boa parte do show o povo estava de pé no bailão do Evandro e sua trupe. Baile Quente, composição deles com Frejat, com perdão do trocadilho cretino, esquentou o povo mais uma vez. Com A Dois Passos do Paraíso foi a hora do estilo teatral da banda aflorar de vez e o talento vocal das ótimas Nicole e Andréa conquistarem o público. Se nos distantes 1982 ou 1983 eram os hoje politicamente incorretos e perigosos isqueiros que iluminavam a canção de amor de Arlindo Orlando, hoje os celulares e suas lanternas fazem um balé luminoso para a singela canção de amor. Momento êxtase do show. Evandro com a massa ganha, então começa a sua homenagem à geração que começou tudo com eles, fez o rock brasileiro virar mainstream e não coisa de drogado e cabeludo setentista, emplacando sucessos como Aluga-se do Raul Seixas (que passou o bastão desse estereótipo pra essa geração), Beth Balanço do Barão, Perdidos na Selva do Gang 90, que talvez fossem uma Blitz mais transgressora e Óculos dos Paralamas. O Blitz fez um revival para o público do melhor que a década de 1980, que nunca se permite acabar, produziu, tudo com o selo Blitz de qualidade, com Rogério Meanda, Claudia, Juba e o velho de guerra Billy, tocando de maneira impecável.

A veia teatral da dupla de vocalistas e do Evandro, que nunca esqueceu de sua época que trazia um trombone, é muito bem explorada e executada em O Homem de Avental, com sua leve ironia descolada e no clássico Biquíni de Bolinha Amarelinha, onde ele e as cantoras dão um show de interpretação. Um dos momentos mais incríveis da noite foi quando Evandro, ao ler um pedido de um fã, para que tocassem O Beijo da Mulher Aranha, música quase lado C da banda, ainda do primeiro disco, mas que eles executaram no peito e na raça, mesmo com 40 anos sem tocar a canção, um exemplo de profissionalismo e carinho para os fãs. Egotrip seguiu o baile com seu divertido refrão narcisista e arranjo excepcional. É claro que o clímax foi Você Não Soube Me Amar, uma música que completa 40 anos, mas ainda encanta e surpreende pelo seu estilo inovador, um teatro cantando, um refrão pegajoso e que fez pedir batatas fritas nunca mais ser a mesma coisa num flerte. Luxo puro e um Araújo Vianna feliz cantando junto. Evandro ainda relembrou o bizarro episódio que tiveram com a censura ao lançar o disco de estreia em 1982. A canção Cruel, Cruel Esquizofrênica Blues foi censurada na época, mas o LP estava pronto, então a solução foi pegar um prego e estragar a faixa na bolacha e assim impedir a execução do trecho, além de ser uma economia pra gravadora, que não precisaria fazer novos LPs sem a canção. Resquícios de uma época patética onde os censores nem sabiam o que proibiam direito e a arte sendo sempre arranhada. Inclusive Cruel… é uma baita música, um blues zona sul carioca dos anos 1980 de responsa. Pra fechar com chave de ouro, ao menos pra mim, a banda encerra o show com uma canção que eu adorava, da carreira solo do Malandro Agulha carioca mais querido, Babilônia Maravilhosa, trilha da novela Top Model, uma ode de Evandro ao Rio de Janeiro, fecha com muita energia um baita show que deixou todo mundo satisfeito, com a nostalgia fortalecida e ainda dando uma chance à Blitz. Se a Blitz ainda é um pastiche ou vive dos quatro anos de glória? Não sei, mas esses quatro anos e mais alguns 36 ainda fazem a alegria de muita gente ávida por diversão dessa lendária banda, divisor de águas na música brasileira e que tem um domínio de palco e cancha exemplares.

 

 

Crédito das fotos: Vívian Carravetta

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