Australian Connection no Araújo VIanna

Houve um tempo, no fim dos anos 1980 e principalmente no início dos anos 1990, que uma horda de bandas vindas da Oceania, mais precisamente da Austrália, fizeram a cabeça dos brasileiros. Chamada pejorativamente de surf music ou rock australiano, o Brasil abraçou de vez várias bandas como Men at Work, Colin Hay (em carreira solo), Midnight Oil, Australian Crawl, Spy vs Spy, Hoodoo Gurus, Gang Gajang,Yothu Yindi. Era a febre do surf no Brasil e o pop rock tinha uma pegada alternativa e refrões animados que eram as marcas desse tal movimento. Era difícil as rádios não entupirem  as programações com bandas australianas e não termos festas regadas com a dita surf music que embalava o litoral brasileiro.

Especialmente aqui no Rio Grande do Sul, no nosso litoral, praias como Imbé e Atlântida tinham uma movimentada cena de surfistas de fim de semana que se empolgavam com essas bandas. Muitas delas vieram tardiamente para o Brasil e fizeram shows antológicos nos anos seguintes. E agora em 2024, dois expoentes dessa tal mania, somados a um projeto do líder de uma das mais importantes bandas da cena, desembarcam no Brasil, para o Australian Connection, festival que une Hoodoo Gurus, Reggae Spys (Spy vs Spy versão reggae) e Gang Gajang. Porto Alegre não poderia ficar de fora dessa celebração, já que o Rio Grande do Sul era quase uma sucursal da música da Austrália nos anos 1990. Esse festival ocorreu sexta passada no Araújo Vianna e eu conto um pouco como foi essa prazerosa viagem no tempo.

Poucas vezes vi um Araújo Vianna tão lotado. O auditório cravado no Parque da  Redenção, por quatro horas, parecia a praia do Imbé de 1993. Com a diferença que a galera tinha uns 30 anos a mais de experiência. Com muita bebida, claro, e clima descontraído, a primeira banda a subir ao palco foi o Reggae Spys. Comandado pelo baixista Craig Bloxom, hoje um renomado chef de cozinha, o projeto revisita os sucessos do Spy vs Spy em novas versões de velhos êxitos. E não é que funciona muito bem? Com T. K. Tarawa na guitarra e Young Chrissy Lowe na bateria, o trio desconstroi sucessos da banda criada em 1981, com arranjos que fecharam como uma luva em canções como All Over The World, que abre o show, Credit Cards, One of a Kind, Hard Times, Harrys Reason,Trash The Planet, Working Week, entre outras. Mas o que levantou a galera foi quando tocaram Clarity of Mind, maior sucesso do grupo, que ficou muito bem com arranjo mais pegado do reggae. Bloxom esbanja simpatia, fala português, lembra das enchentes no Rio Grande do Sul, pula, corre pelo palco e continua cantando bem. Um bom show de abertura que encerrou com A. O. Mod, do disco Xenophobia (Why), de 1988, que fez muito sucesso no Brasil.

Nessas alturas o Araújo Vianna era um mar de gente, ninguém sentado e povo solto pelo local, lotando os bares atrás de cerveja e chopp, num total clima litoral dos anos 1990. Galera bem calibrada para assistir a segunda atração, a lendária banda Gang Gajang, que com quatro disco lançados, virou um objeto de culto para alguns fãs. Talvez menos conhecida que as demais, a banda sobe ao palco por volta das 22h, e com cara de big band, terninhos e muita simpatia, emplaca seu pop perfeito, com canções como Distraction, Initiation, The Bigger They Are e To The North. O mestre Max Callaghan comanda a festa com seu carisma único e voz peculiar, além da super banda, contando com Graham Bidstrup na batera, Geoffrey Stapleton nos teclados, Robbie James na guitarra e a figura Peter “Willi” Willesrdorf no baixo, com terninho, gravata borboletas e óculos, lembrando um professor de química de filmes dos anos 1980. Todos excelentes músicos.

 

 

 

   A galera delira com sucessos como Gimme Some Lovin, Maybe I e Ambulance Man, todas do lendário disco de estreia da banda, em 1985. Mas eles ganham a gauchada quando trocam o refrão de Carioca Girl, por Gaúcha Girl, na divertida canção da banda. Em um momento, Callaghan sai do palco e vai cantar no meio da galera, num exemplo de conexão do artista com o público, dando de dez em muitos malas artistas nacionais, que por vezes nem sabem onde estão quando fazem show. Enfim, essa simpatia e carisma não é para todos mesmo. E o Gang Gajang, em pouco mais de uma hora de espetáculo, termina os trabalhos com Hundred of Languages, do disco Lingo, de 1994. Uma viagem musical competente de uma das bandas mais legais daquela tal invasão, mas que não teve o apelo pop e a execução em rádios da maioria.

Por volta das 23h, eis que surge a principal atração. O Hoodoo Gurus, que já tinha feito um super show no Araújo Vianna ano passado, tem no currículo diversas vindas ao Brasil. O quarteto comandado por Dave Faulkner, guitarra e voz, Nike Reith na batera, Brad Sheppard na guitarra e Richard Grossman no baixo, parece que a cada show melhora. O tempo não muda quase nada a banda com mais de 40 anos de experiência e que, com exceção do baterista Reith, é praticamente a mesma desde meados dos anos 1980. E por quase duas horas vimos o melhor do mais competente pop rock que a Austrália produziu em inúmeros hits que fizeram a cabeça dos brasileiros.

Abrindo com Want You Back, do disco de estreia de 1984, Stoneage Romeos, para delírio da galera, que com certeza na grande maioria, foi pra ver os Gurus. Seguem canções certeiras, como Another World, Crossed Wire e Shadow Me. Destaque para a impecável voz de Faulkner atingindo as notas agudas com maestria, a pegada de Reith, o baixo sutil mas eficiente de Grossman e os solos maravilhosos de Sheppard. Uma aula de palco, orgânico e verdadeiro. Segue canções como The Right Time, Night Must Fall, My Girl, em que Faulkner diz que a compôs com 22 anos. É petardo atrás do outro, com canções como I Don’t Mind, Death Defying e If Only. Faulkner conversa, fala em português e dá um show de simpatia com os fãs, um exemplo de frontman que respeita quem vem assistir ao seu show.

O set ainda tem espaço para Chariots of God, do último disco da banda de 2022, e depois com o sucesso Out The Door, de 1987, que tocou muito no Brasa na década de 1990, a festa surf estava completa. Emocionam ao revisitar 1982, com Leilani, seu primeiro single. Era quase um greatest hits da banda, tocado ao vivo, passando por várias fases, emplacando mais êxitos como You Open My Eyes, Castles in The Air, o super hit Miss  Freelove ´69, Bittersweat e fechando com Whats my Scene, de 1987, e Like Wow Wipeout, de 1985, faixa do segundo disco, Mars Need Guitars. Mas lógico que não tinha nada de fechar sem tocar os três maiores hits do grupo, senão ninguém arredaria o pé e com aquele nível de álcool na cabeça, isso poderia dar problema. Então tocam a ficha com Good Times, também do disco de 1987, a balada 1000 Miles Away, de 1991, sucesso absoluto no Brasil,  cantada com um vibrante coro do Araújo e, é claro, fecham o show com Come Anytime, de 1989, para êxtase dos 4.500 presentes no abarrotado Araújo Vianna. Hoodoo Gurus, mostrando como aliar competência, longevidade e muita conexão com o público, em um show gigante.

 

 

Como falei antes, essa sexta-feira, dia 30 de agosto, foi a noite em que o Araújo virou Imbé de 1993, e a Redenção uma sucursal australiana, com um público animado, em sintonia fina   com o som, com três show excelentes, diretos, sem grandes e mirabolantes produções e  badulaques de palco. Três bandas que vieram pra fazer música de qualidade e apresentar o melhor do pop australiano para o povo gaúcho. Se é  rock australiano, surf music ou o que quiserem nomear, o Reggae Spys, O Gang Gajang e o Hoodoo Gurus, mexeram com um carrossel de memórias na galera, revivendo uma fase em que as bandas da terra dos cangurus dominavam o pop internacional nas rádios, festas e beiras de praias brasileiras, em uma noite pra lá de inesquecível.

 

 

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