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Música

Zeca Pagodinho apresenta show em comemoração aos 40 anos de carreira no Araújo Vianna

Zeca Pagodinho apresenta show em comemoração aos 40 anos de carreira no Araújo Vianna
  • Publishedsetembro 3, 2024

Recentemente, em uma discussão (leia-se conversa fiada) entre amigos, tentamos descobrir quem seria o Bob Dylan brasleiro. Roberto Carlos, apesar da fama, é longe de ser unanimidade, Caetano Veloso é um rasgador de seda e tem uma carreira irregular para ser tanto e Chico Buarque, apesar do quesito intelectual se aproximar, tem um certo distanciamento do popular que Dylan tem. Aí uma luz veio e pensamos que o cara aquele, que poderia ser, senão um Dylan, mas uma unanimidade nacional, tem um nome: Jessé Gomes da Silva Filho, ou simplesmente, Zeca Pagodinho. Zeca não faz mal a ninguém, ele consegue, num país tão desigual e desunido, ter livre acesso em qualquer roda, transita entre populares e sofisticados artistas, é amado pelo povo e pela elite, no seu estilo brejeiro e sereno, leva a vida com um copo de cerveja cheio (hoje em dia um cálice de vinho) e logicamente, faz música, há quarenta anos e de muita qualidade.

Zeca é o cara, e esse cara completando 40 anos de carreira (na verdade 41), veio para Porto Alegre sábado passado para passar a limpo essas quatro décadas de carreira que começaram quando era aquele franzino partideiro e cavaquinista no início dos anos 1980, até se tornar essa paixão nacional. E o NoSet esteve lá no Araújo Vianna pra acompanhar essa aguardada celebração.

Na frente do Araújo o povo secava os copos de cerveja e chopp e curtia rodas de samba fazendo o aquece pro mestre. Dentro do auditório, como era de se esperar, casa cheia. No palco, uma bela decoração lembrando o Rio, com cara de morro, samba e fé. São Jorge abençoava tudo, em cima do palco, pendurado em forma de imagem num círculo. Com a proteção do guerreiro não tinha como dar errado, né? Por volta das 21h30min, a super banda, capitaneada pelo mestre Paulão 7 Cordas, entra ao palco, e no fundo um telão homenageia grandes sambistas, entre eles, os saudosos Ubirany, Almir Guineto, Jovelina Pérola Negra, João Nogueira, Beth Carvalho, Monarco, junto com os ainda entre nós, como Teresa Cristina, Arlindo Cruz, Bira Presidente, Sereno, Alcione, num momento de arrepiar. Eis que surge então a entidade, com uma camisa de botões azul escura, folgada e uma boina gaudéria, fazendo o povo presente vibrar. Para começar a festa, como não podia ser diferente, vai de Camarão Que Dorme a Onda Leva, onde tudo teve início, quando Beth Carvalho gravou esse samba dele, do Arlindo Cruz e do Beto Sem Braço. Não preciso nem dizer que  a galera  já tava de pé e indo ao delírio quando Zeca levanta o copo de cerveja e dá aquele gole com muito gosto. Segue o baile com Pisa Como Eu Pisei, do disco Jeito Moleque, de 1988, e pula para 2015, com Ser Humano.

Zeca não precisa muito pra conquistar a massa, basta ser ele e estar presente. Com Gira Girou me faz emocionar, ainda mais depois de toda a tragédia que vivemos com a enchente de maio, amenizada com a alegria de ver o Zeca cantar. Com Lama nas Ruas, parceria dele com Almir Guineto, o lado romântico do cantor fala mais alto. Uma característica de Zeca é o romantismo, pois canta canções que na voz de outros até seriam consideradas bregas, e com sua interpretação genuína, viram obras imortais. Manda no mesmo clima Saudade Louca, do Arlindo Cruz, e dá espaço para uma mais recente, a honesta Mais Feliz, de 2019. E a viagem segue percorrendo as quatro décadas com os clássicos Não Sou Mais DissoBrincadeira Tem Hora. O lado religioso e a fé vêm com tudo com a linda Minha Fé, Patota de Cosme, do seu segundo disco, e Ogum, em que entrega uma emocionante interpretação e prova de amor ao guerreiro protetor.

Zeca fala pouco, mas é uma das suas características, bico calado, copo vazio, mas um carisma hipnótico que faz todo mundo vibrar. Hoje se dá o direito de cantar cada vez menos, a banda sensacional cobre o artista, que deixa pra massa o sacrifício de cantar junto os sucessos estrondosos da sua carreira. E vá sucesso nisso, tem Judia de Mim, do disco de estreia de 1986, que mudou a cara do samba e pagode, Fita Amarela, uma das mais cantadas do show e a lindíssima Verdade, em que mais uma vez o apaixonado Zeca derrete o público, contemplando o amor realmente verdadeiro. Segue com Maneiras, a música que é a cara dele, e que com seu refrão “tem gente vive chorando de barriga cheia”, faz todo mundo cantar, e Zeca faz questão da alisar a sua protuberante barriga em tom de deboche, de quem segue a vida como quer e que dane-se o mundo.

Lembra do Candeia que fez muito sucesso com essa composição de Alcides Malandro Histórico, a lindíssima Vivo Isolado do Mundo, homenageando sua Portela querida. Seguindo a toada com a azul e branco de Madureira, ataca  com a empolgante Coração em Desalinho, dos mestres Monarco e Ratinho, com o povo cantando junto. Muita gente costuma dizer que um show do Zeca é uma roda de samba autêntica, mas é muito mais que isso. Tem um clima informal, mas os arranjos da banda são de um requinte único, os músicos pouco improvisam e estão sempre ligados no maestro Zeca, que tem um domínio total sobre eles. Inclusive, tem um número instrumental no show que serve pro Zeca trocar de camisa. Brincadeira tem hora, como diz a música, e um show do Zeca é um espetáculo à parte, e de primeira qualidade, sem espaço pra algo fora do script. Fico imaginando o trabalho da direção musical em escolher umas 25 músicas apenas, pra tanto sucesso do Zeca em 40 anos…

E essa, digamos assim, finesse e excelência musical de Zeca, que veio com o disco Samba Para as Moças, é lembrado no show com a canção que dá nome ao disco e seu refrão contagiante e Seu Balancê, de 1998, em mais uma da faceta romântica do Zeca. Mas é claro que a canção que faz parte daquelas que todo brasileiro, independente de raça, classe social, credo ou ideologia conhece, não poderia faltar e com Deixa Vida Me Levar, um clássico com a cara do intérprete e também um retrato de um Brasil de 2002 que não existe mais, saudosamente, ainda emociona e faz todo mundo cantar junto. Depois de uma saída breve, volta ao palco e encerra com um pot-pourri de partidos altos, que fizeram sua fama como um dos maiores do estilo no Rio de Janeiro, como Vou Botar Teu Nome na Macumba, Casal Sem Vergonha e encerra com o início de tudo mesmo, quando gravou com Jovelina Pérola Negra no LP Pau de Sebo Raça Brasileira, em 1985, com Bagaço da Laranja, um dos partidos mais tocados em qualquer roda de samba nesse Brasilsão. Zeca se despede e lembra que no outro dia teria mais, se Deus quiser, encerrando um show de pouco mais de uma hora e quarenta minutos que entra pra história de quem gosta não só de samba mas de música de qualidade.

Como diria a canção de Noel Rosa, batuque é um privilégio e ninguém aprende samba no colégio, e Zeca Pagodinho é um  desses privilegiados com esse dom, mas ralou bastante  em rodas do subúrbio, aulas no Cacique de Ramos, aprendeu com a Velha Guarda da Portela, virava a noite versando, aprendeu na vida e soube sofisticar sua música, o que o tornou um  dos maiores, senão o maior sambista de todos os tempos do Brasil. Um cara amado e idolatrado, que com seu carisma e simplicidade faz a gente até perdoar suas falhas vocais e seu jeito apressado de cantar, que não deixam de ser marcas de suas interpretações. Se é um Bob Dylan tupiniquim não sei, mas que com jeito peculiar e cativante de ser, faz a gente feliz e quem é privilegiado por vê-lo junto a sua banda ao vivo num show tão especial, somos nós, que temos o orgulho de dizer que o Zeca é uma das caras do Brasil, ou o que de melhor temos.

 

Written By
Lauro Roth