Ana Cañas Canta Belchior no Auditório Araújo Vianna

Se existiu algum cantor, compositor, poeta e principalmente pensador na música brasileira que preenche todos os requisitos, com certeza posso afirmar que um deles é Antonio Carlos Belchior. Um caso raro de um rapaz latino-americano que fez um imenso sucesso em um  momento da carreira, quando não se apegava e tinha medo da fama fez mais ainda e quando virou saudades se transformou em lenda atemporal. Belchior é para ser pensado, curtido, amado e principalmente, provocar reflexão. Ana Cañas foi uma que emergiu em Belchior e transformou a obra do artista em um show visceral, humano e verdadeiro, uma justa homenagem ao ídolo. Voltando a Porto Alegre (ano passado tinha feito show no Bar  Opinião), agora em um show no templo da capital, o Araújo Vianna, Ana Cañas Canta Belchior, e novamente fomos conferir esse espetáculo.

Com um bom público, com um clima mais de espetáculo e contemplação, diferente do show no Bar Opinião, mais leve e despojado, Ana Cañas surgiu por volta das 21h15min, abrindo com Na Hora do Almoço, do disco de estreia do cantor cearense. Com um banda super competente, com Fabá Jimenez, guitarra e violão, Estevan Sinkovitz, baixo e violão, Douglas Maiochi na batera e Bruno Marcucci nos teclados, Ana, por quase duas horas, revisita clássicos, com pitadas de jazz, blues, rock e emenda músicas como Apenas um Rapaz Latino-Americano e Velha Roupa Colorida. Alguns podem alegar que Ana Cañas possa ter uma voz limitada e sentem falta de um vozeirão característico do homenageado, mas entendo que aí está o mérito, ela recria a sua maneira, com sua suave e cativante voz, a poesia inebriante do artista.

Ana segue com Comentário a Respeito de John, Antes do Fim, do clássico disco Alucinação, e emenda uma delicada e emocionante versão de A Divina Comédia Humana. A hoje cult, e cantada a plenos pulmões pela plateia, Sujeito de Sorte, faz o auditório delirar e Medo de Avião completa mais um bloco.

Um roadie traz um banco e um copo de cerveja e Ana Cañas, num momento intimista e dos mais emocionantes do show, se entrega de vez, numa tocante e intensa versão da maravilhosa Coração Selvagem, acompanhada do violão de Fabá Jimenez. “Tenho pressa pra viver”, diria Belchior, mas Ana, com sua suave voz, canta de forma divina, numa intensidade de aplaudir de pé. O mesmo segue com Paralelas, sucesso do poeta cearense que Vanusa, outra voz eterna, imortalizou. Nessa, Cañas deita e rola, sussurra e emociona, com o violão certeiro de Fabá abrilhantando a canção. Mais uma vez o auditório contempla com uma sonora ovação no final da arrebatadora performance.

Em uma comparação entre o show do ano passado no  Bar Opinião e nesse, o 152º show da sua turnê de homenagem ao Belchior, ficava nítida a diferença de público e comportamento. Se no Opinião tivemos uma clima mais leve, numa performance mais de barzinho, mas não menos competente da experiente Ana, no Araújo Vianna, a plateia estava lá naquele clima mais sisudo de espetáculo de MPB, por mais que Ana nunca perdesse a simplicidade, carinho e comunicação com o público. Mas esse clima, por outro lado, com uma iluminação perfeita e um som dos mais calibrados que vi em mais de 60 coberturas por lá, transformaram o show numa experiência contagiante.

O show segue com Ana ao violão, cantando uma canção inédita de Belchior, Rolê no Céu, mas é em Retrato 3×4, onde o cantor, com sua poesia, conta as agruras de ser do Norte e tentar arriscar no Sul, com apenas fé, coragem e talento, que a artista faz uma das melhores interpretações, com direito a um discurso de como também com cara, coragem, fome e esperança, conta sua trajetória, de como foi seu começo na música, onde do zero se tornou a artista que é, em mais um momento forte e comovente, como diria o nosso poeta, de rasgar a nossa carne. Mas falando em poeta, chegou a hora dela chamar nosso poeta que, mesmo longe demais das capitais, atravessou as highways da vida e se tornou pop. Fã de Belchior, sobe ao palco Humberto Gessinger. Juntos cantam com maestria a A Palo Seco e a quase mantra Alucinação, com Ana levantando uma faixa com os dizeres: “Amar e mudar as coisas me interessam mais”. Humberto pode ser criticado pela sua estática participação, mas só quem sabe entende o quanto é difícil alguém, que no caso dele toca qualquer coisa que faça melodia, encarar um público de mãos vazias, mas a dupla não fez feio e nos apresentou  uma bela parceria.

Para o bis ela entra com uma animada versão de Galos, Noites e Quintais, para fechar com chave de ouro com o hino Como Nossos Pais. Em mais uma desconstrução pessoal da música, e mais uma atuação de fino talento, suor e exuberância, Cañas faz a plateia levantar e cantar junto para apoteoticamente brilhar e encerrar mais uma noite de homenagem ao gênio Belchior.

Ana Cañas provou que, independente do local, se um bar ou um grande auditório, seu ímpeto em trazer a poesia do ilustre cantor, funciona de qualquer jeito. Um show impecável, de alguém que soube entrar com alma e coração na obra de um dos maiores de todos os tempos, como ela mesmo diz: “a cada vez que ouvimos Belchior, nos encantamos, mas nós tocamos e nos inspiramos mais”. E com esse show dessa turnê que anda chegando ao fim Ana Cañas, além de brilhar como a ótima cantora que é, faz um serviço para todas as gerações que é apresentar, resgatar ou relembrar o homem que se dizia de coração selvagem, questionava o mundo ao seu jeito, mas sua alma era puro amor. Viva Belchior e parabéns Ana Cañas por nos entregar com seu corpo, essência  e voz, o que foi um pouco do inesquecível artista.

 

Crédito das fotos: Vívian Carravetta

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