Ana Cañas Canta Belchior em Porto Alegre

Visceral, verborrágico, profundo, dramático. Um cronista do cotidiano, que enfrentava e entendia o mundo ao seu modo e nos deixou poesias em forma de canções, que passaram a barreira de gerações e hoje se tornaram atemporais. Falo de Belchior, um dos maiores compositores do Brasil, que por muito tempo era mais conhecido pelo seu vasto bigode e o sumiço em vida da carreira, fato que só fez crescer o fascínio pela divina arte do mestre nordestino. E quem, através de uma terapia de quarentena, nas dramáticas lives de sobrevivência financeira e mental da época forte da pandemia, meio que sem querer resolveu cantar o mestre? Falo da paulistana Ana Canãs, que de um violão e voz pandêmico, transformou sua homenagem num premiado show, que corre o Brasil com suas incríveis interpretações das canções de Belchior. E esse show chegou em Porto Alegre na semana passada, dessa vez no lendário e quarentão Bar Opinião. E é claro, o NoSet conferiu de perto o espetáculo, Ana Canãs Canta Belchior, numa chuvosa sexta-feira.

O Opinião talvez seja um dos bares mais lembrados e amados da música brasileira. Centenas de shows passaram por lá nesses 40 anos e uma das características dele é que se mantém o mesmo bar aconchegante, plural e acolhedor de sempre. Com um excelente público, Ana Canãs subiu ao palco por volta das 21h15min esbanjando brilho no figurino e uma simpatia ímpar. Para começar ela manda o primeiro sucesso do primeiro LP do cantor. Logo na primeira música a artista mostra a que veio, e com uma interpretação segura já ganha a plateia. Com Apenas um Rapaz Latino Americano, do clássico Alucinação, faz a plateia cantar a plenos pulmões um dos maiores sucessos do cantor. Um diferencial de Ana é que ela interpreta ao seu modo. Claro que jamais teria o registro grave e anasalado do cantor, mas com sua voz alta e um dose incrível de performance, com caras, bocas, gestos e coração consegue homenagear com extrema segurança e carisma o poeta cearense.

Segue Velha Roupa Colorida. Chega a ser covardia tentar mexer com uma música que foi cravada nas nossas memórias com a marca absurda de Elis Regina, mas Ana faz um blues suave, marcante, e brilha a sua maneira, dando seu tom a esse clássico da música.  Com as lindas Comentário a Respeito de John e a hoje cultuadíssima A Palo Seco, Ana literalmente faz todos saírem do seu caminho e rasga como faca a profundidade das suas interpretações desses dois petardos. Momento ímpar de muita emoção, com a cantora controlando e regendo a alegre plateia. Segue o baile com Antes do Fim, do já citado Alucinação e um arranjo rock and roll, emulando o melhor da música dos anos 1970, misturando o som do norte com Led Zeppelin, pra delírio da plateia.

Ana, com sua simpatia, fala de amor, de se apaixonar, brinca com sua plateia e anuncia A Divina Comédia Humana. Como diria o poeta, o amor é mais profundo que um encontro casual, a cantora esbanja amor em mais uma emocionante canção. Sujeito de Sorte é outra que hoje virou um grande sucesso e segue o show da artista em mais uma segura versão, o mesmo com Medo de Avião, um dos maiores sucessos do cantor na época. E com Coração Selvagem, como diz a canção, Ana toma um gole de cerveja antes da música, fala com a plateia e conta sobre o quanto está feliz com esse super show. Não posso deixar de falar da discreta mas competente banda dela, com seu fiel escudeiro Fabá Jimenez na guitarra e violão, Douglas Maiochi na bateria, Estevan Sinkovitz no baixo e Bruno Bernardi nos teclados. Banda com eficiência e elegância dando o tempero ideal para as intensas interpretações da cantora.

Ao cantar Paralelas, Ana senta num banco e dá um show de performance, interpretando um dos maiores clássicos da música brasileira, também imortalizado por Vanusa. Canãs, numa entrega total, brinca com a voz e usa sua sensualidade, numa profunda e hipnótica atuação teatral, num show de luzes, extremamente corporal, lírico e emocionante. Momento de luxo e bom gosto.

Ao anunciar Fotografia 3×4, pergunta se tem nordestinos na plateia e mais uma vez faz uma entrega total da sua voz a um dos maiores libelos da canção nortista do Brasil. E ainda tem tempo de contar sua história de vida, o quanto lutou, passou perrengues, comeu o pão que o diabo amassou para se tornar cantora em um país que pouco se importa com arte, e que como seu ídolo cantado no show, graças a muito ferro e fogo consegue hoje o devido reconhecimento. Outro momento extremamente emocionante de uma artista sincera e humana. Alucinação fecha o show com uma plateia ensandecida cantando uma das frases mais lindas do cancioneiro tupiniquim: “Amar e mudar as coisas me interessa mais”.

Uma breve pausa, após calorosos aplausos, ela volta com Galos, Noites e Quintais, do primeiro disco de Belchior, para encerrar com Como Nossos Pais. Bem, mas que encerramento. Como já falei, emular Elis é impossível, imitar é perda de tempo e o que se faz com uma canção tamanha dessas? Ana conduz ao seu jeito, com um arranjo quase minimalista, uma atuação de performance marcante, abusando do seu jeito sexy e domínio de palco, conduzindo como uma maestrina uma plateia, que canta com intensidade e emoção, e a artista apenas tem a batuta de cadenciar a massa. E também com direito de mudar a letra para: “eles perderam e o sinal está aberto para nós que somos jovens”, para delírio da galera. Enfim, um final apoteótico, de uma artista que vive cada música, tem uma simpatia incrível, respeita seu público, fala a linguagem de seus fãs e faz o que todo artista tem que ser, quebrar a barreira público e plateia, pois são gente de carne, osso e coração, e isso Ana tem de sobra.

Difícil falar em palavras a emoção de ouvir, sentir, se emocionar, amar e se entregar às canções de Belchior com interpretações tão fortes, criativas e com vida própria. Ana mostra que a cada ano a poesia do artista ainda é super atual, seu discurso serve como uma luva e suas dúvidas, inseguranças e o humanismo presente nas letras ainda encantam e nos fazem refletir, viver e sonhar. E Ana Canãs, ao seu jeito, com sua voz doce, aguda, uma contradição à voz de trovão quase monotônica do imortal poeta, nos apresenta um dos grandes shows do ano, sem grandes firulas, mas com muito amor, talento, entrega e a certeza que, se ainda formos os mesmos, como nossos pais, mas curtirmos Belchior e Ana Canãs, tudo valeu a pena.

 

Crédito das fotos: Vívian Carravetta

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