A dura realidade do cotidiano – “Um Dia Qualquer”

A realidade das comunidades controladas pelo tráfico é constantemente retratada, mas sempre há como mostrar de outras ópticas, pontos de vistas diferentes.

O mais novo trabalho nacional, “Um Dia Qualquer”, tem a missão de mostrar, em cinco episódios, o tráfico, a corrupção policial, o jogo de poder e o falso moralismo, sob a perspectiva de Penha e sua família.

Essa é uma produção da Com Domínio Filmes e da Elixir Entretenimentos para o Canal Space, com direção de Pedro von Krüger e assinado por Denis Feijão. A estreia oficial está marcada para o dia 17 de agosto, mas o primeiro episódio já foi disponibilizado pelo canal do YouTube da Space.

Detalhe interessante: o roteiro original era destinado para um filme, de mesmo nome, mas aí surgiu a oportunidade de fazer a série, mas o projeto do filme não foi descartado.

O filme de “Um Dia Qualquer” já está pronto, mas não pode ser lançado no circuito nacional, mas já está na pauta de grandes festivais, como o de Buenos Aires e de Berlim.

A equipe do NoSet teve o privilégio de maratonar a série uma semana antes da estreia, já adiantando aqui a história muito bem contada.

Para entender a história é preciso saber que ela é apresentada em dois dias, dia 02 de fevereiro de 2010 e dia 08 de fevereiro de 2020. É a mesma comunidade, com os mesmos personagens (os principais), as ações do primeiro dia ajudam a desenrolar as do segundo.

Em 2010 essa Comunidade (que não recebe nome) é dominada pelo crime organizado do tráfico de drogas, liderado por Seu Chapa e sua primeira dama, Penha. Ele era respeitado naquelas redondezas e achava que tinha um aliado na polícia, Quirino.

Quirino, Chapa e Penha cresceram juntos, por isso imaginava-se que ele seria um aliado, mas não o era. Quirino tinha um só objetivo, acabar com o domínio de Chapa ali, ele achava imoral que todo uma comunidade respondesse a um criminoso. Em um dia qualquer, 02 de fevereiro de 2010, ele faz uma emboscada e mata Chapa.

A partir daí quem passou a mandar ali foi Quirino e seu braço direito, Maciel. Dentro dessa década eles formaram o que chamam de “Projeto”, consistindo em espantar qualquer insinuação de que o tráfico ou “criminosos” voltassem à ativa ali.

Parecia uma utopia, mas na realidade o que foi criado foi algo como uma milícia. Os moradores da Comunidade passaram a pagar taxa de segurança para eles, que faziam rondas noturnas e, quem aparentasse fazer algo que Quirino e companhia não concordasse, desaparecia.

Essa “justiça” pelas próprias mãos era mais severa quando se tratava de alguém que Quirino não gostasse, como o caso de um dos filhos de Chapa e Penha, Emerson.

Na despedida do carnaval de 2020 Emerson foi testemunha de uma ação errada de Quirino e Maciel e filmou em seu celular, eles viram e quiseram assustar o rapaz. Acontece que Emerson simplesmente sumiu no dia seguinte, 08 de fevereiro de 2020.

Penha passa o dia inteiro procurando pelo filho, sabendo que o pior poderia ter acontecido, afinal ela conhecia a truculência que Quirino costumava usar. Mas ela não é ouvida por ninguém, primeiro porque não querem que ela cause confusão com Quirino (o “homem de Deus” que ajuda a Comunidade), depois porque ela é conhecida por ter sido a primeira dama do tráfico, então não teria nada a reclamar sobre aquela situação.

Dois detalhes importantes precisam de destaque: 1ª – Quirino é “só” o chefe da Comunidade, mas ele quer ir além, se tornar político; 2ª – Ele quer que seu filho, Beto, se torne advogado e assim ajude o tal Projeto do pai, mas o moço pensa em ajudar de outras formas, o que o torna mais perigoso que o próprio pai.

Confesso que a minha primeira impressão foi estranha, mas aí eu percebi as razões da minha estranheza. Primeiro, eu estou acostumada a grandes produções estrangeiras, depois porque essa não é a minha realidade, então tudo parece muito distante.

Assistir produções como “Um Dia Qualquer” me ajuda a tirar o véu dos meus privilégios sociais e étnicos e a entender que esses problemas são reais, não são existem só em meus livros jurídicos ou no noticiário, quando estoura um escândalo de corrupção policial ou a história de milícias armadas.

É uma dura realidade, mas é a realidade e ela precisa ser falada.

Olhar de fora uma situação dessas resulta uma reflexão profunda, como a certeza de que não há como condenar ninguém por ações isoladas. Na concepção conturbada de Quirino ele era um santo, estava fazendo um milagre na Comunidade e, por isso, deveria ser respeitado pelos moradores, fosse pela confiança fosse pelo medo.

Ele acha que as suas ações são melhores que a de Chapa, mas na realidade estas os tornam iguais. Iguais não, algo os diferencia, Chapa não era santo, mas sabia fazer amigos de verdade, não pelo medo, e a relação dele com Penha era real, eles realmente se amavam.

E pensar que existem mesmo policiais e ex-policiais que pensam como Quirino, que existem comunidades que vivem sob o terror, seja do tráfico seja das milícias. E que muitos conseguem mesmo chegar na política e implementar seus “projetos de paz”.

Em um ano eleitoral isso passou a ser um alerta necessário!

Achei muito interessante eles não terem nomeado a Comunidade e o Projeto, essa abertura deixa espaço para que muitas comunidades se vejam na série e que muitos “projetos” sejam relacionados. Representatividade e, mais uma vez, alerta para quem assiste e presta atenção aos detalhes.

Eu tenho uma comparação a fazer, que pode ser resultado daquela estranheza que falei no começo ou da minha mente fazendo ligações impensadas (às vezes faz sentido, às vezes não faz sentido algum). Mas antes vou falar um pouco do elenco.

Penha é vivida por Mariana Sousa Nunes, que mostra, mais uma vez, a sua versatilidade. Essa personagem conta com duas personalidades totalmente diferentes separada por uma década, a primeira dama do tráfico e a mãe religiosa, e a atriz conseguiu passar cada partícula dessas personalidades com muita propriedade. As cenas com ela são de arrepiar.

A caracterização dela é um ponto importante, é como se fosse dois personagens em uma, porque muda tudo, unindo a intensidade do olhar da atriz.

E se você não conhece Mariana Sousa Nunes você não é noveleiro ao ponto de ter acompanhado “Amor de Mãe” até a produção ser suspendida pela pandemia. Ela fez Rita, mãe biológica de Camila (Jéssica Ellen), e que é morta por Carminha … ops … Telma (Adriana Esteves).

Não sou muito noveleira, mas “Amor de Mãe” mora no meu coração e a participação de Mariana na novela foi brilhante.

Quirino é interpretado por Augusto Madeira, conhecido como Gugu Madeira. Fiquei surpresa em saber que ele tem uma carreira relacionada ao humor, tendo trabalhado inclusive no “Zorra Total” e em “Ninguém Tá Olhando”. Confesso que não assisti esses trabalhos, então minha visão dele é do homem nada agradável que é o seu personagem, o fator cômico passa longe neste caso.

Isso só me mostra que ele é um ator tão versátil como sua colega de cena.

Seu Chapa, dono da Comunidade toda, é vivido por Jefferson Brasil. Ele não é estereótipo dos traficantes retratados em filmes e novelas brasileiras, sua fala é agradável, embora se saiba do que ele é capaz. Jefferson é conhecido por trabalhos como “Ilha de Ferro” e produções relacionadas à moda e à música.

Maciel, o braço direito de Quirino, é vivido por Vinícius de Oliveira, conhecido por trabalhos como “Unidade Básica” e “Segunda Chamada”. Peguei ranço de Maciel depois de ver que ele era igual a Quirino, no começo eu fui iludida por mim mesma achando que ele seria diferente.

Outros nomes presentes na produção são Juan Paiva, Willean Reis, Junior Fair, Gabriel Leal, Samuel Melo, Eli Ferreira, Pablo Barroso e Tainá Medina.

Em geral o elenco é realmente muito bom, mas não são rostos muito conhecidos meus e isso revela que consto naquela lista de pessoas que assistem pouco as produções nacionais.

Meta para a vida: realmente valorizar mais os talentos brasileiros, eles merecem!

Voltando para aquela comparação estranha … Se eu tiver viajado muito podem dizer, mas eu me lembrei muito de série inglesa “Peaky Blinders”.

Pode ser uma obsessão? Pode, mas vou explicar alguns porquês de me lembrar dos irmãos Shelby e companhia ao assistir “Um Dia Qualquer”.

Chapa tinha projetos de expansão e chamava seu negócio de firma, assim como o frio e calculista Thomas, lá em Birmingham. Lógico que a firma de Chapa era totalmente ilegal e não tinha como se legalizar (narcotráfico) e ele tinha uma personalidade totalmente diferente, mas, ainda assim, era um homem ambicioso a frente de uma empreitada pelo mundo do crime.

Assim como Quirino, o Inspetor Chester Campbell queria acabar com uma gangue que dominava toda uma comunidade, mais por ódio ao líder do que pelas ações da gangue em si, tornando-o tão violento quanto o próprio Thomas. Campbell não consegue formar a milícia como Quirino, mas algo me diz que ele seguiria passos semelhantes.

Penha era casada com Chapa, mas já tinha tido um caso com Quirino, isso fez com que se formasse um triângulo amoroso disfuncional e foi uma das razões de o policial corrupto ter criado tanto ódio pelo amável bandido. Como esquecer do amor platônico de Campbell por Grace e o ódio dele quando descobre que ela havia se apaixonado por Thomas?

As posições depois se confundem, porque Chapa é morto, então podemos ver Quirino como líder e ameaçando quem pudesse tirar isso dele. Ele ameaça o outro filho de Penha, o mais velho, que estava se preparando para ser o mais novo pastor, dizendo algo como: “Deus pode ser seu patrão, mas quem manda aqui sou eu”. Lembram que Thomas falou coisas como, “tem Deus e tem eu” ou “não Deus, ainda”?

Ainda tem o fato de Thomas ter conseguido a carreira política, assim como Quirino tanto almeja.

A ambição, a corrupção, a justiça pelas próprias mãos e os dramas familiares existem, as tragédias diárias existem, seja na sombria Birmingham, Inglaterra, da década de 1920 do século 20, seja uma comunidade qualquer no ensolarado Brasil da segunda década do século 21.

Os cinco episódios serão exibidos entre segunda (17) e sexta (21), sempre às 22h. No sábado (22), os assinantes podem ‘maratonar’ a série, a partir das 18h. O primeiro capítulo está disponível no YouTube:

Até mais!

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