Existem fenômenos na música que pode parecer difícil de explicar porque fazem tanto sucesso em determinado local e em outros não. Aqui em Porto Alegre, o uruguaio Jorge Drexler, talvez pelo fato de o Uruguai ser tão próximo do Rio Grande do Sul, porque fala tão bem português ou, simplesmente, porque é talentoso e de uma simpatia ímpar, realmente tem um lugar privilegiado no coração dos gaúchos. E com justiça. O cantor uruguaio mais famoso do mundo esteve em Porto Alegre domingo passado para a primeira de duas apresentações no Araújo Vianna, mesclando sucessos com o novo trabalho Tinta y Tiempo. Claro que o NoSet esteve presente para contar um resumo do que foram as mais de duas horas de show do cantor charrua.
Em um domingo agradável, iniciando uma promissora primavera, o público ainda chegava, quando tivemos a abertura da cantora local Paola Kirst. Começando o show com uma bela música à capela, com uma belíssima e poderosa voz e acompanhada pelo violonista Paulo Borghetti, fez um digno aquece com suas canções refinadas e autorais.
E eis que surge o uruguaio quase porto alegrense, com 30 anos de carreira, alguns discos e grandes sucessos na boca do povo, que lotou o auditório. Esbanjando simplicidade e simpatia, beijando o palco, acompanhado de uma ótima banda, ele começa o show com Plan Maestro, do seu último disco, Tinta y Tiempo, fazendo a galera levantar. O palco, diga-se de passagem, tinha uma iluminação discreta, quase minimalista, com a banda não ocupando toda a extensão, até pra facilitar a visão da plateia. Como bem definiu o médico cantor, Jorge, o Araújo parece uma nave espacial, e completo: onde somos abduzidos por duas horas por boas músicas. Ele segue com Deseo, música do álbum Eco, de 2004, mas ainda bem afiada na boca dos fãs. A lindíssima Corazón Impar, do mais recente disco, segue o baile. Ele tocou todas as canções do Tinta y Tiempo, atitude que considero corajosa da parte de um artista, que confia que seu púbico não é apenas fã de sucessos e procura novidades do seu ídolo. Cinturón Blanco, mais uma do último trabalho segue o set, pra depois tocar Me Haces Bien, do disco Sea, de 2001, abre para Fusión, de 2004, onde ele faz um dueto vocal com Alana Sinkëy, sua backing vocal, que dá um show de voz. Jorge até pode não ter uma voz absurda ou técnica, mas tem uma afinação exemplar e faz o simples nos encantar nas suas canções. Uma delas é Bendito Desconcierto, exemplo de canção simples, poética, mas que cativa. Inoportuna, do seu disco de 2006, 12 Secundos de Oscuridad relembra o início de seu sucesso pós Diários de Motocicleta. Depois o show dá uma esfriada com Era de Amar, monótona canção que abre pra uma versão de İOh, Algoritimo!, do último disco. Segundo palavras do próprio Drexler, o algoritmo é o novo oráculo dos nossos tempos e nessa música ele fala sobre isso tocando apenas com seu talentoso guitarrista, Javier Calegui. Salvapantallas, do álbum Eco e Asilo, de 2017, onde faz dueto com a outra cantora, a também talentosa Myriam Catrelle, o que, com certeza, foi o momento mais contemplativo, pra não dizer modorrento do show. Com Tinta y Tiempo, uma baita canção, mas estragada com uma introdução muito chata do baterista Borja Barrueta, seguindo o baile com El Día que Estrenaste el Mundo, com Drexler cantando com um efeito na voz.
Sorte que depois dá uma virada, quando Drexler pega o violão e fez seu momento barzinho, conversou, contou histórias e falou sobre o Brasil, cantando Que Tal um Samba?, de Chico Buarque, com um impecável português, voltando a conquistar a plateia. Emenda duas ótimas canções suas nesse formato, Milonga del Moro Judío e La Edad del Cielo. Lindo momento do show. Com Duermevela ele faz sua bela homenagem a sua mãe e conta histórias das suas origens brasileiras. Movimiento segue os trabalhos, abrindo para Vento Sardo, parceria dele com Marisa Monte e cantada junto com Alana Sinkëy, numa incrível interpretação. A trinca seguinte do show, com Tocarte, do Tinta y Tiempo, a divertida Telefonia e Silencio, onde ele interage com a plateia nas paradas pedindo o tal silêncio, foram grandes momentos de interação artista e plateia, com Drexler domando novamente a massa. Destaque da banda também a pianista Meritxell Neddermann e o baixista e responsável pelas bases programadas, Carles Campon. Jorge e a banda saem de cena com a galera de pé esperando o bis.
Ainda na adrenalina, eles voltam com a excelente La Guerrilla de la Concordia, que em tempos tão obscuros e intolerantes, é um balsamo para os ouvidos, além de um show vocal. Mas realmente ele coloca o Araújo pra dançar, digamos bailar, com sua La Luna de Rasquí, explicando o porquê da canção, num ritmo contagiante, que é impossível não se envolver, com Jorge fazendo trocadilhos com Porto Alegre, solto e divertindo aos fãs. Todo Se Transforma, talvez seu maior sucesso, fecharia com chave de ouro o show, essa com todo mundo, até gente como eu, ainda neófito da obra do Jorge, cantando junto. Clímax total. Como o cantor parecia não querer mais sair do palco, ele chama a banda toda pra tocar na frente, com instrumentos de percussão, num clima quente, Amor al Arte, linda música do Tinta y Tiempo, com um arranjo simples e maravilhoso e uma ode à arte e todas as suas formas e o quanto ela vale, finalizando sim um grande show.
Jorge Drexler é aqueles fenômenos como Fito Paez da Argentina, Vitor Ramil do Rio Grande do Sul, Nei Lisboa do Bom Fim, fenômenos locais, mas com canções universais (no caso do Fito, do Jorge e do Ramil), que encantam o porto-alegrense com suas obras. No caso do uruguaio, sua ligação quase espiritual com Porto Alegre, o faz ter uma legião de fãs de verdade, que contemplam seu espetáculo, suas simples canções de amor e cotidiano, apreciam o artista, que esbanja simplicidade, simpatia, baila (para quem não dançava até 2014, é um baita pé de valsa), conversa e faz arte, e mesmo pra quem, como eu, não era muito conhecedor da obra, tenho que tirar o chapéu para o artista que é Jorge Drexler, que fez um domingo ser mais alegre em Porto Alegre.
Crédito das fotos: Vívian Carravetta