120 Batimentos Por Minuto | acima de ativista, longa francês premiado pela crítica em Cannes é humano.

Em 2013, quando assisti ao excepcional documentário Como Sobreviver a uma Praga, me lembro de ter feito um certo esforço (ainda não escrevia críticas, mas inundei minha linha do tempo com isso) para ressaltar a importância de que todos parassem um pouquinho de suas vidas para dedicar duas horas a um filme que mostrava um registro doloroso, emocionante, mas, acima de tudo, humano, de um grupo de pessoas que se viram na obrigação de se organizarem com o intuito de lutar pela própria sobrevivência contra a mortal epidemia de AIDS do fim da década de 80, em Nova York. Uma das organizações mostradas no documentário é o ACT UP, formada nos EUA em 1987 pela comunidade LGBT com o objetivo de realizar ações não violentas para que empresas e pesquisadores divulgassem os avanços de medicamentos em relação ao tratamento da doença.

Pois bem, chegando essa semana no circuito comercial, 120 Batimentos Por Minuto poderia ser facilmente encarado como uma ficcionalização de parte da história desses ativistas, só que aqui no caso, se passando com a mesma ACT UP, mas em Paris, na França. Assim como o documentário fazia questão de mostrar aquelas vítimas da doença fora do preconceito e jamais determinadas por seu comportamento sexual, pode-se dizer que o filme tem como maior mérito a mesma característica: tratar os personagens como humanos acima de “ativistas soropositivos” (nem deveria, já que nem todos tinham o vírus).

Partindo de um começo que mostra o grupo imediatamente durante um debate logo após uma ação mal vista pela imprensa – através, inclusive, de uma eficiente montagem que usa um flashback para introduzir personagens e características do grupo – o longa francês já consegue estabelecer boa parte dos elementos que vão se intercalar como fundamentos no desenvolvimento da narrativa: a ação dos ativistas como grupo organizado e o retrato dramático das consequências da epidemia nos personagens. O ACT UP, aliás, jamais é caracterizado como uma unidade homogênea. Sempre fazendo questão de que o debate de ideias (incluindo as discordâncias) seja mostrado durante o planejamento das ações, o filme consegue nos mostrar com bastante verossimilhança a sensação de fazer parte de um grupo com uma maioria de jovens que foram subitamente obrigados a correr contra o tempo sendo que ainda mal tiveram tempo de viver. Vários deles são diferentes entre si, mas tem em comum o fato de lutarem contra uma doença e contra as próprias diferenças. Ao usar boa parte dos diálogos para enriquecer esses personagens através de conversas mundanas e pontos de vistas diversos, o filme consegue desenhar um retrato bastante palpável dos ativistas – aliás, termo que pode acabar os reduzindo a uma ideia, e o filme tem o mérito de fazer justamente o contrário.

Falando em luta, ela, longe de ter “apenas” um vírus como alvo, ainda ganha contornos maiores pela ignorância que cercava a doença há décadas atrás, já que a comunidade LGBT foi a grande atingida pela epidemia (e na época muita gente achava que só eles poderiam contrair o vírus). Fato que contribuiu imediatamente para que a demonização da livre sexualidade (mais precisamente, a homo) surgisse como o argumento da vez para justificar o preconceito. Se de um lado, boa parte da população se limitava a enxergar os portadores do vírus como vítimas de seu próprio comportamento (inclusive, com coisas absurdas como “é uma punição divina contra os homossexuais”), as histórias dos seres humanos reais ficavam restritas. Nesse sentido, o roteiro, escrito pelo também diretor Robin Campillo, não se limita apenas a retratar o ACT UP – apesar de fazê-lo bem –, mas também faz questão de humanizar seus integrantes.

E não basta ser um poço de empatia para perceber que, com a única diferença provável de uma orientação sexual diferente da maioria, personagens como Sean (Nahuel Biscayart), Thibalt (Antoine Reinartz) e Nathan (Arnaud Valois) têm vidas repletas de amores, medos, inseguranças e imperfeições, assim como quaisquer outros – e no caso específico, ainda fazem parte de um grupo que atravessou provações pelas quais a maioria jamais passará. Esses aspectos ganham sensibilidade através da direção de Campillo, que usa uma câmera mais inquieta para simular um aspecto documental à nossa experiência de acompanhar a vida daqueles personagens. Essa abordagem é basicamente constante, sendo que, eventualmente, o cineasta arrisca inserir algumas sequências de montagens que dão uma pitada estilística a mais, além de servirem como um elemento que representa um aspecto emocional coletivo dos ativistas em momentos diferentes da narrativa (mais precisamente, comemorações em festas e protestos seguidas de outras lutas e ações do grupo), o que acaba traçando um arco comovente à medida que sabemos que aqueles que, no começo, sentem a adrenalina que vem das conquistas coletivas, ao final eventualmente serão obrigados a trocá-la pelo receio inevitável de uma doença que, na época, era uma sentença de morte à curto prazo.

A galeria de bons personagens somada à preocupação da obra em não julgá-los traz ótimos momentos ao longa. Isso vale tanto para os principais arcos, quanto para outros momentos secundários – destaco aqueles onde a câmera de Campillo enquadra as mãos e os rostos apreensivos dos jovens enquanto assistem a uma palestra sobre o funcionamento de um medicamento específico (para nós é uma aula chata de biologia, para eles é uma esperança).  Já outros passamos a conhecer através de suas interações, como é o caso de Sean e Nathan, cujas histórias são apresentadas durante uma noite de sexo, o que acaba servindo, inclusive, como uma demonstração de que o ato nada mais é do que um resultado da atração entre duas pessoas ( e que por isso os dois não passaram a temer). Sim, parece um clichê, mas o filme se passa numa época em que o sexo (convenientemente para alguns, o que envolvia os homossexuais) era mais demonizado do que a doença que se transmite através dele, e isso ganha invariavelmente um significado a mais para a temática (aí eu até consigo imaginar a revolta seletiva de quem vai achar exagero que o filme dedique tempo para isso, quando se esquecem que ali haviam seres humanos entre 20 e 30 anos que só podiam se ver livres para exercer suas próprias liberdades justamente porque “formaram” uma comunidade que podia conviver apesar dos olhos acusatórios da sociedade).

Apesar de tantas coisas positivas, o filme também tem uma pequena parcela de deslizes. Um deles tenho de admitir ter um caráter de expectativa. Mesmo reconhecendo que a parte das ações dos ativistas foram bem representadas, falta um pouco de senso de conclusão para o ACT UP, mesmo no curto período que é retratado, principalmente quando a narrativa passa a se dedicar a um personagem específico (o que não é ruim, diga-se de passagem, mas senti falta de um fechamento nesse aspecto). Já outro problema é mais evidente e recai sobre o 3º ato, que, apesar de ser carregado emocionalmente, acaba se estendendo muito além do necessário, ainda mais levando em conta a oportunidade de ter concluído a história num belo e inspirado momento (e que envolve um personagem em estado terminal e o rio Sena).

Apesar de se juntar o fato de que o filme parece sair um pouco do foco na trama social e política (por causa de minha primeira queixa) com um tempo excessivo que arrisca deixar a experiência cansativa, 120 Batimentos Por Minuto ainda é um ótimo filme, e continua necessário (como o documentário que citei) e com temas que ecoam até hoje, mesmo que em momentos históricos diferentes.

Nota:

Trailer

Data de lançamento: 04 de janeiro de 2018 (2h 20min)

Direção: Robin Campillo

Elenco: Nahuel Biscayart, Arnaud Valois, Adèle Haenel, Antoine Reinartz, Aloise Sauvage, Catherine Vinatier, Caroline Piette

Sinopse: Retrato íntimo do grupo de ativistas do ACT UP, grupo de apoio a pessoas com AIDS, no início da década de 1990.

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