Crítica: Você Nunca Esteve Realmente Aqui

Com cinco minutos de filme, eu me sentia incomodado no cinema. Ajeitei-me na cadeira, mas permaneci desencaixado. Não, o filme não era ruim. Ele apenas provocava desconforto. Joaquin Phoenix, protagonizando Joe, com a câmera sempre próxima, era uma das razões do meu desassossego. A trilha sonora, (de Jonny Greenwood, do Radiohead) com batidas propositalmente descompassadas, era outra. O visual sombrio compunha uma moldura para aquela inquietação. Aquela… sensação da violência estar sempre prestes a explodir. O desajuste de Joe era compartilhado com quem estava assistindo.

E essa sensação de desequilíbrio permanece da primeira à última cena.

Você Nunca Esteve Realmente Aqui [You Never Stay Really Here, 2017] não é um filme fácil. É clara a intenção da diretora e roteirista Lynne Ramsay de não o fazer ligado a clichês ou estereótipos. Eles estão ali, mas é o espectador que deve os preencher. Ela pretendeu incomodar a plateia. E conseguiu. Essa é a maior qualidade da sua obra. E, ao mesmo tempo, o maior defeito.

Não há atalhos. Não há diálogos explicando quem é Joe, o que ocorreu com ele e por que flerta com a loucura. Há flashes de memórias. Rápidos. Há pistas em certas atitudes, fragmentos de conversa e vinculações com objetos, com o martelo, que liga Joe à sua infância.

Com alguma atenção, compreende-se que ele é um mercenário e assassino especializado em encontrar e resgatar garotas sequestradas. Tem um histórico de abuso em casa, uma passagem no exército e em alguma força policial. Há uma sugestão da sucessão de traumas que o fazem flertar constantemente com a loucura e com a ideia de suicídio, além de o libertarem para a brutalidade.

Na história, Joe é contratado para resgatar a filha de um político, que estaria sendo mantida cativa e utilizada como prostituta de luxo. Ocorrem complicações, que não descreverei para evitar spoilers. Elas colocam Joe em um caminho de vingança e acrescentam mais fúria ao seu já complicado equilíbrio psicológico.

As tomadas de violência não são óbvias. Grande parte delas são apenas sugeridas. Hiatos preenchidos pela imaginação do público. Mas, mesmo assim, há muito sangue. Se você for susceptível a cenas fortes, não o veja.

O filme é sustentado pela interpretação de Joaquin Phoenix. Ele fala pouco e pouco precisa da fala. Sua interpretação é impressionante. Tão impressionante quanto a de Robert De Niro em Taxi Driver (não, não estou exagerando). A barba e os cabelos cumpridos, o corpo forte, torto, recoberto de cicatrizes e um andar claudicante mal permitem que se reconheça o ator de A Vila, Gladiador, Hotel Ruanda, entre outros (muitos) filmes. Seus olhos e expressões transmitem o que ele quer. Desponta, desde já, como um dos candidatos ao próximo Óscar, que já lhe escapou por entre os dedos nas três nominações anteriores.

Lynne Ramsay dirigindo.

Lynne Ramsay é escocesa e tem uma trajetória pontuada de bons trabalhos, como os O Lixo e o Sonho [Ratcatcher, 1999] e O Romance de Morvern Callar [Morvern Callar, 2002]. Seu novo filme tem como referência óbvia Taxi Driver – Motorista de Táxi [1976], mas também há pontos de convergência com O Profissional [Léon, 1994] e Chamas da Vingança [Man on Fire, 2004] e Oldboy [2003]. Você Nunca Esteve Realmente Aqui foi aplaudido de pé no festival de Cannes de 2017 e recebeu os prêmios de melhor roteiro (adaptado do livro de mesmo nome escrito por Jonathan Ames) e de melhor ator (Joaquin Phoenix).

Dúvidas quanto à vontade de assistir Você Nunca Esteve Realmente Aqui? Posso lhe dizer para não ir ao cinema se deseja uma história de vingança padrão, hermética e com boas cenas de ação. Não há um herói pasteurizado. O filme não será um momento de relaxamento. O desconforto lhe acompanhará por algum tempo depois de sair da sala. Vá, apenas, se quiser ver a inquietude e a originalidade que marca os grandes filmes.

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