Roberto Carlos – Eu Ofereço Flores no Araújo Vianna

A Santíssima Trindade popular brasileira andou tendo perdas significativas nos últimos anos. Perdemos o Rei Pelé, no apagar das luzes de 2022. Em 2024, o sorriso e a risada mais contagiante desse país virou saudades com a morte de Silvio Santos. Enfim, do trio de ouro que moldou nosso esporte, entretenimento e música, só restou o cantor de olhar pidão de Cachoeiro de Itapemirim, nossa majestade o Rei Roberto Carlos. E nosso Rei continua firme na atividade, cantando, provocando e sentindo emoções com seus súditos. Com recém completos 84 anos, o cantor, de passagem pelo Rio Grande do Sul, realizou dois shows no Araújo Vianna, no meio da semana passada. E nós, do NoSet, não poderíamos perder e marcamos presença na segunda noite de apresentação.
O Rei esteve por aqui em 2023 pela última vez e agora apresenta um show “novo”, Eu Ofereço Flores, em que promete apresentar seus maiores sucessos. Novo entre aspas, porque realmente de novo do último show não temos grandes novidades. O que não é nenhum problema para a corte fiel de fãs do Roberto. Casa cheia com um público que ia de gente que jamais tinha visto o artista a velhas conhecidas que o acompanham há quase 6 décadas e com dezenas de shows na bagagem.

Com um leve atraso de uns 15 minutos, a super banda RC9, com mais de uma dezena de músicos, comandada pelo maestro Eduardo Lages, faz um aquece para a galera, tocando um arranjo com um pot-pourri instrumental de alguns sucessos da carreira do cantor, até que surge do fundo do palco a luminosa presença de Roberto Carlos Braga, de branco, com uma camisa floreada, levemente desabotoada por baixo do blazer. De peito aberto, começa mais um espetáculo com a abertura que faz há mais de 40 anos, o ultra clássico Emoções. Depois, tem tempo para um breve discurso, quando dá uma pequena bronca nas apressadas fãs que no show passado queimaram a largada e foram à frente do palco antes da hora. E com o Roberto é assim, perfeccionismo que beira à irritação para dar à plateia o que ele acha melhor. Logo em seguida vem com Como Vai Você, canção dos irmãos Antônio e Mário Marcos, uma das minhas preferidas, em mais uma emocionante interpretação.

Segue com a mais agitadinha Além do Horizonte, onde um jogo de luzes no palco ajuda a movimentar a canção, e por surpresa, canta a lindíssima Desabafo, do seu disco 1979, canção um tanto esquecida, um belo acréscimo no tão repetitivo set list real. Chega o momento em que ele se senta num banco alto, e espera os acordes do piano do maestro Lages para cantar mais uma vez Detalhes, aquela música que desde 1971 é presença certa nos seus shows. Mais um momento em que a luz brilha ainda mais e o Rei, mesmo com tanto tempo a cantando esta música, parece que estamos ouvindo sempre pela primeira vez o desabafo do cabeludo abandonado.

Mais uma vez Roberto discursa e alega que um relacionamento é sempre para sempre e quem ama não tem passado, e sim presente. Homenageia sua amiga Isolda, que já virou saudades, mas deu de presente para ele Outra Vez, uma das canções mais lindas da música brasileira. Mais uma vez o Araújo se derrama em lágrimas cantando junto versos como “esqueci de tentar te esquecer” e “só assim sinto você bem perto de mim outra vez”. Sem palavras para definir o sentimento de presenciar esse momento lindo. Mas esse cara só tem música linda, né? Então ele emenda com a sensacional Olha, canção que fez 50 anos esse ano, do disco de 1975.

Roberto está mais solto que da última vez, brinca mais, mais risonho, mais humano, mas ao entoar os primeiros versos de Nossa Senhora parece que entra em um transe em forma de oração que contagia qualquer um, independente de fé, afinal todos precisamos de uma mão para enfrentar essa vida e essa canção de fé diz exatamente isso.
Passado o momento religioso do show, ele sai de cena e deixa a sua banda fazer um número musical instrumental, um tanto rock, com pitada de jazz, mas com aquela sonoridade incrível que só um show do Roberto tem. Nossa majestade surge então e começa o momento que fala de uma das suas paixões, os automóveis. Abre com O Calhambeque, da Jovem Guarda e depois emenda com a divertida O Cadillac.
Antes de cantar a próxima música, Roberto avisa que desde que perdeu sua Rainha, sua mãe, segundo ele, essa canção o deixa triste, mas jamais irá deixar de lado uma das homenagens mais lindas e sinceras que um filho possa ter dedicado a sua mãe. Lady Laura, com seu arranjo sublime e seu refrão que provoca lágrimas, faz a gente voltar a ser menino e pedir colo de mãe, e na voz do Rei somos representados com maestria e um sincero sentimento.


Roberto então lembra de um momento na carreira que provocou a maturidade e respeito artísticos. Nesse momento, deixou de ser um ídolo juvenil e começou a fazer canções românticas adultas e graças a apostas de Miele e Ronaldo Bôscoli, adentrou ao Canecão, o templo da MPB. Com um show histórico no início dos anos 1970, ganhou enfim referência de crítica e deu os primeiros passos para ser o maior cantor e vendedor de discos do Brasil. Com um discurso da época que a dupla lhe deu, chegamos ao momento motel do show. Aquele momento onde canções mais picantes e calorosas dominam e o sexo e o prazer se fazem presentes no pot-pourri com Seu Corpo, Café da Manhã, Os Botões, Falando Sério (que eu adoro) e termina com a quase tântrica, O Côncavo e o Convexo. Esbanjando simpatia, brinca com a plateia, pedindo mais animação no fim, ao cantar a palavra sexo.

Segue o baile com uma das canções da fase brega que homenageia as mulheres, no caso aqui, Mulher de 40, mas explicando que mulher não tem idade, todas tem seu valor… então tá. E com Cavalgada, uma das mais lindas canções da sua fase motel, que o Araújo fica hipnotizado, tanto pela interpretação sensual do Rei, quando o arranjo rock progressivo da banda, com um ar de psicodelia das luzes. Momento único e de difícil descrição. Sensorial magnetizante, um dos pontos altos do show.

Nosso Rei depois fez questão de apresentar a banda um por um, mas como se fosse uma música, enfatizando que tem ao seu lado alguns dos melhores músicos do planeta. Sem dúvida alguma, eles todos são exímios músicos, fazendo o que deve ser feito para deixar o Roberto como protagonista. O sucesso recente Esse Cara Sou Eu é outra que é cantada junto pela galera, agora menos engessada, se soltando mesmo, já que um show do Rei tem como característica um rígido controle disciplinar da plateia, que não pode fazer mais que balbuciar as canções e até mesmo uma ida ao banheiro pode ser um problema devido aos brucutus dos seguranças dele, que tentam controlar a tal perfeição que são seus espetáculos.

Enfim, chega aquele momento que liberou geral, e toda aquela horda de jovens, senhoras, homens, simpatizantes e asseclas do monarca do romantismo podem ir à frente do palco, onde curtem de pé ainda Amigo, Como é Grande o Meu Amor por Você, Jesus Cristo e a última música, que dá o título à turnê, Eu Ofereço Flores, bela novidade do quadrado setlist. Sim, mas é nesse momento que começa a distribuir as rosas brancas e vermelhas, que saem das mãos do Roberto, e a briga pela rosa é grande, uma peleia como se fala aqui no Rio Grande, onde muitas saem felizes com a flor na mão e outras decepcionadas por tanto esforço em vão.




O brilho nos olhos de quem sai com uma é algo difícil de mensurar, é como se fosse um prêmio no coração que provoca um sorriso indescritível. Mas termina assim mais um show dele, com um repertório quase igual ao do último, mesmo tipo de discurso, mesmas regras, mesmo profissionalismo, mas dessa vez um Roberto mais soltinho, mais engraçado e falador. Mesmo sabendo todo o enredo do show, ainda tem aquela coisa que só caras como ele tem aura de ser – um cara que é amado e idolatrado por todos. Não tem como ficar indiferente a ele, que tem uma luminosidade única, que nos faz babar por ele, se emocionar junto, cantar junto, simplesmente ele sabe como poucos dominar uma plateia e saímos extasiados com isso. Não tem como ser indiferente ao ver aquele capixaba na nossa frente, que desafia o tempo e há décadas encanta os brasileiros. Assistir a um show do Roberto é algo que a gente leva para a vida toda e espero que ainda possamos ter o privilégio de vermos de novo, pois mesmo com a sensação de déjà vu, de que é quase sempre igual, sempre nos dá vontade de assistir tudo de novo outra vez.

Crédito das fotos: Vívian Carravetta