Revivendo Clássicos: Gladiador completou 20 anos e continua um incrível espetáculo visual e visceral
Ano 2000, no último ano do século XX, passado o temor global do bug do milênio aonde as máquinas iriam se revoltar e bagunçar os sistemas na Terra e na euforia de um novo século e mais portentoso ainda. Um milênio às portas, um filme com uma trama passada há 22 séculos, demonstrando com uma crueza de gelar os ossos o pão e circo das batalhas de escravos lutadores num Coliseu lotado de gente vibrando por sangue e com a conivência de vaidosos imperadores e nobres corruptos, literalmente além de findar o século 20, abria com meses de antecedência o século 21, falo de Gladiador (Gladiator), épico de Ridley Scott que completou 20 anos de sua estreia.
O britânico Ridley Scott em 1998, já possuía uma carreira espetacular, desde sua excelente estreia em 1977 com Os Duelistas (Duel, 1977) ao clássico Alien – o Oitavo Passageiro (Alien, 1979) emendado com o cult movie de uma geração Blade Runner – o Caçador de Androides (Blade Runner, 1982). Apenas esses três filmes já bastariam para entrar no panteão dos grandes diretores, mas ainda tinha no currículo também geniais Chuva Negra e o road movie feminista Thelma e Louise e mais nada para provar seu exímio e versátil talento. Certo dia recebeu o roteirista David Franzoni e os produtores que mostraram a ele um roteiro sobre uma história de um gladiador traído movido pelo ódio e vingança e que juntamente foi apresentado a uma pintura do século 19, do artista Jean Leon Gerome, chamada Policce Verso. A impressinante pintura que inspirou Franzoni a criar a história mostrava um gladiador recebendo o sinal de um imperador o liberando a matar seu oponente numa batalha no Coliseu. Conta que Scott ficou um bom tempo admirando a tela impressionado e ali decidiu que passaria essa atmosfera para as telas de cinema. Nascia ali o filme Gladiador.
A história do filme é até banal. O General Maximus, após vencer uma batalha sangrenta comandando suas legiões do império romano nas terras geladas da Germânia, só pensa em voltar pra sua terra e ver a esposa e o filho. Mas ele não espera que o imperador Marco Aurélio queira contar com ele para herdar o império como defensor de Roma. Isso tudo provoca a ira do filho legítimo de Marco, Commodus, que acaba matando o pai e ordenando a morte de Maximus e sua família. Logicamente nosso herói escapa da emboscada, mas ao chegar ao seu lar vê que a sua mulher e seu filho foram brutalmente assassinados. Com isso acaba escapando para o norte da África e é vendido para Proximo, um ex-gladiador que comanda um exército de guerreiros que distraem a massa que se diverte com sangue alheio. Um dia, Commodus, já imperador de Roma, resolve promover novamente as batalhas no Coliseu, utilizando feras, bigas e escravos e a turma de Proximo comandada por Maximus, seu melhor lutador, é convidada para gladiar por lá. Devido a sua habilidade Maximus acaba ganhando o apoio do povo e provoca mais ira do invejoso Commodus que faz de tudo para acabar com o eterno general, e esse só pensa que sua vingança está a apenas alguns metros do seu alcance.
Conta a lenda que o roteiro escrito a seis mãos quase não existia e Russel e Scott, a cada dia que passava, mudavam algo nele, acrescentando ou abolindo diálogos e tomadas. Mas o roteiro realmente é o de menos, Gladiador funciona até hoje pelas épicas e realistas lutas, quase um balé de sangue. Poucos filmes de mainstream da época mostraram uma violência tão crua, às vezes repugnante, nas grandiosas batalhas do longa. Um show de efeitos visuais, som e uma coreografia muito bem dirigida. O filme é um deleite para termos uma ideia da brutalidade que se passava no interior do Coliseu romano. Russel Crowne, que já tinha feito uma atuação genial em Los Angeles Cidade Proibida (essa digna de Oscar), foi alçado para estrela graças a sua segura e física atuação no filme. Dramaticamente ele pouco brilha, mas seu esforço e suor nas lutas do filme valeram uma estátua do Oscar, vencendo Tom Hanks, em um ótimo desempenho no filme Náufrago. Entre a bola de vôlei Wilson e uma armadura, a academia preferiu a armadura. Joaquin Phoenix como Commudus ficou famoso pelo gesto do polegar que demonstrava aprovação ao gladiador (alguns historiadores alegam que o gesto não era bem esse), talvez uma das marcas do filme, mas sua atuação é por vezes caricata. Por ser um excelente ator, Phoenix exagera nos trejeitos, inspira-se nas atuações de atores que faziam imperadores em épicos do passado, quase um Nero de Quo Vadis. Um personagem onde a insensatez, a inveja e a loucura o moldam por completo, tudo muito bem trabalhado por ele, porém soando extremamente exagerado. Connie Nielsen tem um papel secundário, mas cumpre bem a sua dualidade de se manter fiel ao irmão sádico imperador ou ajudar sua paixão antiga que é o general Maximus, um papel pouco aproveitado no filme.Com uma bela atuação também está Djimon Hounson, como o gladiador Juba exímio guerreiro e fiel escudeiro de Maximus nas batalhas. Com certeza um dos grandes pepinos da produção foi a morte de Oliver Reed. O genial e polêmico ator inglês faltando três dias pro fim do filme resolveu beber “socialmente” em algum pub de Valletta em Malta onde ocorriam as gravações. Oliver era conhecido por beber horrores, mas jurava que na época estava são e ia beber pouco. Lá foi reconhecido por marinheiros britânicos que resolveram provocar o ator. Então Reed, segundo testemunhas, além de muitas competições de dardos e queda de braço, bebeu 8 litros de cerveja escura, 12 doses de rum, meia garrafa de whisky e muito conhaque ganhando também a competição de quem bebia mais gastando o equivalente a mais de três mil reais de bebida. Reed, alterado, tentou caminhar deu uns passos e simplesmente teve um mal súbito e caiu. Ainda foi levado ao hospital, mas não resistiu. Com a morte do ator e faltando cenas, o personagem dele, Proximo, o mercador de escravos e treinador de gladiadores, teve como corpo um dublê e seu rosto colocado por computação gráfica para completar o filme. Triste fim para um gigante como Reed.
Realmente Gladiador peca pelo roteiro vazio e às vezes piegas, abusando de atuações físicas e dramatizações caricatas. Nada pode se falar sobre o espetáculo de imagens que o filme proporciona nos dando uma experiência visual de tirar o fôlego. Desde as primeiras tomadas na batalha da Germânia, filmadas em uma floresta inglesa, aonde mais de 1000 figurantes foram utilizados, com flechas incandescentes e uma sincronia e direção impecável e uma fotografia exuberante, talvez sendo uma das cenas mais impressionantes do longa. As batalhas, com sua crueza sanguinária, ou como diziam alguns críticos na época: “as imagens quase faziam nos sentir o cheiro do sangue”. Tudo isso embalado pela marcante trilha de Hans Zimmer que fez muito sucesso na época. E a reconstituição de época é maravilhosa, com um Coliseu construído na ilha de Malta dando um ar de fidedignidade único, completado por computação gráfica que multiplicou os figurantes ao triplo e quase que somos praticamente transportados para o ano 180 antes de Cristo, mostrando tudo o que o cinema moderno (para época) podia fazer para renovar e turbinar com efeitos um gênero tão famoso nos anos 1950 e 1960 que era o cinema épico. Na década de 2000, muitos filmes na temática foram produzidos a partir dele abusando de efeitos visuais, revigorando e modernizando o gênero.
Gladiador concorreu a 12 prêmios de Oscar, ganhou cinco: melhor filme, ator, figurino, melhor som e melhor efeitos visuais. Scott não levou, perdeu para Steven Soderbergh com seu filme Traffic. Injusto? Talvez, por que Gladiador é um filme todo de Scott, mas a academia não quis premiá-lo porque na época existia ainda certo preconceito com filmes onde efeitos visuais predominavam, talvez seja esse o motivo de Scott não abocanhar o Oscar. Nas bilheterias o épico de vingança romano lucrou 450 milhões de dólares, um sucesso estrondoso.
20 anos depois a importância de Gladiador fica clara no seu pioneirismo em revisitar um tema quase enterrado pelo cinema se aproveitando dos recursos digitais que a virada do século tinha a seu favor. Um filme visual e contemplativo que abriu um leque de oportunidades para o cinema e principalmente séries de TV explorar épocas remotas com uma reconstituição primorosa e o excesso de violência apesar de parecer apelativa é extremamente realista. Existe até certa tentativa de comparar Spartacus com Gladiador, mas enquanto o épico de Kubrick dava um tom social e uma consciência de uma revolta de classes no Império Romano, o filme de Scott passa pouco por esses temas, explorando em seu enredo vingança, traição, um que de romance, batalhas épicas e lutas antológicas além de dar ao mundo do cinema um novo herói – o invencível General Maximus. Reassistir Gladiador é uma bela pedida sempre, basta apenas cuidar para não se sujar com algum respingo de sangue que eventualmente possa sair de sua tela tamanho espetáculo de crueza e violência.