Resenha de “O livro do Cemitério”, de Neil Gaiman

Neil Gaiman é um autor que dispensa apresentações. Não é pelo fato de sua fama ou as vendas que batem recordes. A verdade é uma: ele escreve muito bem e, aliado a isso, também é dono de uma imaginação digna de uma criança (lembra da passagem bíblica onde é dito que para entrar no reino dos céus é preciso ter a pureza de uma criança?) e eu digo isso não como algo que traga demérito, muito pelo contrário.
Li algumas das obras de Neil (Sandman, Deuses Americanos, Stardust, Coraline e outras) e achei-o um livro que, inicialmente, parecia estar voltado ao público infantil. Claro, infantil ou não, é algo escrito por Neil Gaiman e isso já é o suficiente para que eu leia. Foi assim que iniciei a prazerosa leitura de “O livro do cemitério” e é tão boa que li uma segunda vez, fato que é incomum mesmo com livros de muito mais prestígio e fama.

“A mão estava no escuro e segurava uma faca”

O início do livro é conturbado e tenso. Uma família assassinada, um bebê que foge por instinto, um matador alucinado e um cemitério. Morte, covardia, ódio e temor reunidos em um mesmo plano. Quais as chances do bebê escapar de seu algoz? A lógica diria que não há chances, mas o destino sempre contrariou a dama dos cálculos e, mais uma vez, não houve lógica no que se sucedeu.
O menino e o assassino se desencontram. Os mortos protegeram a criança e espantaram o mal (é estranho como sempre pensamos nos mortos como a parte “má” da história). São os mesmos falecidos que resolvem adotar o menino e mantê-lo sob a proteção do cemitério. A partir de então, o menino sem pais recebe o singelo nome de Ninguém ou Nin, para os íntimos.
Com um lar e uma família, Nin cresce e aprende os segredos reservados aos mortos. Ele, desde seu primeiro dia no cemitério, recebe a proteção de Silas, um misterioso e poderoso fantasma. Mais do que um protetor, Silas será vital para a manutenção da vida de Nin.
No cemitério, apesar de vivo, ele tem a permissão para vagar, dialogar e usar os mesmos recursos que apenas os fantasmas tem. Esse é o trunfo de Nin: a liberdade do Cemitério. No solo sagrado em que sua nova família está enterrada e mora, ele adquire os dons de sumir nas sombras, amedrontar, sussurrar como um morto e muito mais. Mas o menino não aprende isso de uma hora para outra e é aí que surge uma professora para ele tão teimosa e perseverante quanto ele próprio.

Para Ninguém Owens, criado desde bebê por fantasmas e seres de outro mundo, a morte é apenas a morte e o perigo está na vida, do outro lado dos portões do cemitério. Lida com os vivos é a lição mais difícil que o menino terá de aprender. Tão difícil quanto crescer.

No decorrer da evolução do menino para o jovem, muitas coisas fantásticas acontecem. Bruxas, protetores de túmulos, vivos, mortos e muitas outras criaturas cruzam o caminho do pequeno Nin. Em cada nova aventura, Neil traz lições de vida e uma narrativa extremamente cativante.
E é essa a verdade sobre “O livro do cemitério”. Ele é um livro diferente, não há dúvida. Com tema sobrenatural, seria de se esperar algo já visto, pois é uma área abordada de quase todas as formas… Quase!
O grande lance de Gaiman é retratar personagens fantásticos e situações impossíveis de forma natural. Ele deu características humanas aos deuses esquecidos em “American Gods”. Coraline convive com pais “possuídos”.  A Morte e o Sonho interagem com entidades, deuses e humanos. São criaturas inconcebíveis que, sob o olhar de Neil Gaiman, tornam-se tangíveis. Como leitor, você acredita que aquilo é possível.
Nin também está no rol dessas personagens fantásticas. Ele é especial, mas não um ser superdotado. O que há de especial para essa criança é o destino que lhe foi reservado. Desde o início, o bebê é, literalmente, um sobrevivente.

Neil já havia citado em algumas entrevistas que sua inspiração para escrever “The graveyard book” era o clássico “O livro da selva” ou “The jungle book”. Para os que não se situaram, este é o livro que mostra a aventura do menino Mogli. As referências são muitas, desde o menino órfão até o protetor e mestre do garoto. Os ambientes são diferentes, porém são verdadeiras “selvas” onde as regras precisam ser seguidas e os ensinamentos levados a sério.

Assim é a vida de Ninguém Owens após a morte de seus pais e a adoção pelos fantasmas. Mesmo sob a tutela dos mortos, tal como Mogli, Nin é perseguido pelo assassino de sua família até quase a idade adulta. Em o Livro da Selva, a floresta e os animais “ocultam” e doutrinam Mogli, ao passo em que no Livro do Cemitério, os mortos e o próprio cemitério literalmente ocultam o menino de seu algoz.
Com os falecidos, que tem sentimentos e comportamentos iguais aos vivos, o menino é criado com amor e as reprimendas normais a que todas as crianças estão sujeitas. Não há diferenças – apesar de tudo – da criação de Ninguém com a de outras crianças, já que a essência do carinho da família não lhe foi negada.
O livro mostra a evolução do menino a adolescente de forma coesa, ainda que seja um romance pequeno em quantidade de páginas. Nin cresce e aprende com os seus, conhece pessoas, conhece mortos e desenvolve a Liberdade do Cemitério, com dons iguais aos dos mortos.
Ainda que haja ação e passagens tensas, o que fica ao final da leitura é a lição sobre a importância da família, dos valores familiares e a força dos que amam, pois é esse mesmo amor que transforma um bebê em um jovem, ainda que assassinos, fantasmas e outras situações indiquem ao contrário.
Gostei de algumas passagens onde fica evidente o trabalho de pesquisa do autor sobre os cemitérios e rituais funerários antigos:

“- É solo consagrado, disse Silas. – Sabe o que isso quer dizer?
– Não mesmo – disse Nin. 
Silas andou pelo caminho sem perturbar uma folha caída que fosse e se sentou no banco ao lado de Nin.
– Existem aqueles – disse ele, em sua voz sedosa –  que acreditam que toda terra é sagrada. Que ela era sagrada antes de existirmos e será depois. Aqui, em seu país, no entanto, eles abençoaram as igrejas e o solo onde enterram as pessoas, para torná-los sagrados. Mas ao lado de terreno consagrado deixaram terra não consagrada, a Vala Comum, para enterrar os criminosos, os suicídas e aqueles que não são da mesma fé.
– Então as pessoas enterradas do outro lado da cerca são más?
Silas ergueu uma sobrancelha perfeita.
– Hummmmm? Ah, não, de forma alguma…”

Neil Gaiman traz um romance leve, porém extremamente bem escrito e de fácil e agradável leitura. As ilustrações de Dave McKean, antigo colaborar de Gaiman, acrescentam positivamente à obrar. Como disse inicialmente, o autor dispensa apresentações e, para variar, esta obra dispensa recomendações, tamanha sua qualidade. Uma nota que não posso deixar de lançar é que a maior parte do romance se passa em um antigo e abandonado cemitério, limitando fisicamente a ação, o que não implica em dizer que a imaginação e a criatividade tenham sido minimizadas ou limitadas. Ah! Preparem os lenços para o capítulo 8, um dos mais bonitos e emocionantes que já li em um livro.

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