Ser valorizado(a) pelo seu trabalho ou pelo simples fato de ser um ser humano passa um pouco desapercebido em um mundo pautado pela burocracia, impedindo que pessoas sejam pessoas.
Vocês acham que estou fazendo alguma crítica ao funcionalismo público brasileiro? Poderia até se aplicar, mas estou falando de uma história bonita, embora triste, de um britânico lutando com a burocracia no interior Inglaterra, país de primeiro mundo.
No filme “Eu, Daniel Blake” (I, Daniel Blake) o protagonista, Daniel, sofre um infarto e fica inabilitado para o trabalho, precisando de um benefício, que seria equivalente ao nosso Auxílio Doença do INSS. Mesmo ele ainda não estando liberado para o trabalho ele foi classificado como inabilitado para receber o benefício, portanto tinha duas opções, solicitar o Seguro Desemprego ou apelar da decisão do perito.
O drama foi escrito pelo roteirista Paul Laverty, que afirmou ter pesquisado a fundo as histórias reais que estão retratadas no longa. Segundo Laverty, nada do que foi mostrado no filme foi uma criação dele. Todos esses relatos e histórias que serviram como base para o roteiro foram importantes para definir o tom que o filme seguiria. “Nós sentimos que a história era tão forte que tínhamos que ser muito simples, muito claros, muito econômicos, e que o filme não precisava de qualquer embelezamento. Nós procuramos encontrar um estilo que fosse absolutamente claro, e simples, e sem adornos, sem qualquer movimento estranho ou com qualquer coisa que distraísse, impedindo de captar a essência das pessoas em frente à câmera, e de descrever a situação delas com economia e simplicidade”, explicou o diretor, após a exibição em Cannes.
Sobre a abertura para improvisação dada aos atores, o diretor disse que foi um processo natural. “É muito fácil trabalhar com atores porque eles são cheios de imaginação, cheios de vulnerabilidade. O que eu tentei fazer foi rodar o filme em ordem cronológica e passar o roteiro em partes para o elenco com pouco tempo para filmagens. A ideia é que parecesse improviso, mas muito do que está em cena, estava no roteiro original”, completou.
De primeiro ele quis apelar, mas a burocracia foi grande demais, daí ele tentou o Seguro Desemprego, que trouxe mais estresse ainda. Para conseguir o tal Seguro ele precisava preencher uma ficha virtual, porém Daniel nunca nem teve um computador, avalie entrar na internet. Depois de muito tentar, sempre com ajuda, ele conseguiu preencher a ficha.
Os problemas acabaram? Não! Para receber o seguro ele deveria cumprir um “check-list”, uma das exigências era entregar currículo, para mostrar que estava atrás de emprego. O problema é que ele ainda não poderia trabalhar, logo ele entregou os currículos sem poder aceitar emprego algo. Dá para entender a farsa que teve que acontecer para uma pessoa de 59 anos, já infartado e sem poder passar por estresse, receber um benefício?
O bom nessa história todo foi Daniel tem encontrado companhia para passar por isso. Em uma das viagens dele no departamento público ele encontra Katie, uma londrina, mãe de duas crianças, desempregada e que acabara de chegar na cidade (a história se passa em Newcastle).
Daniel é viúvo e nunca teve filhos, a única pessoa mais próxima é o vizinho, que aparenta gostar como se fosse um filho. Por isso, e por estarem passando por situação semelhante, ele se apega àquela família, sente-se quase compelido a ajudar.
Parece coisa de romance, né? Quando eu li a sinopse também achei, porém o filme emociona mais da forma como é contada, dois amigos “recentes” que se ajudam a enfrentar grandes desafios. Para os filhos dela Daniel se torna quase um avô, alguém em que eles podem confiar.
Para mim o destaque é filhinha de Katie, Daisy. Ela estava com raiva da mãe, porque teve se ficar longe da avó e dos amigos de Londres, mas ela cuida da mãe mesmo assim. Daisy foi quem mais se apegou a Daniel, ela amava ouvir suas histórias e o admirava. Detalhe, ela só tem uns 10 anos, a doçura dela ao fazer ou dizer coisas simples, mas que podem mudar o humor de alguém, emociona mais do que qualquer coisa no filme.
No geral o filme é europeu, a produção é inglesa, francesa e belga, tem elementos típicos de filmes europeus (pelo menos do pouco que conheço) como o tom poético, mesmo que trágico, mas é limpo, sem rodeios, exatamente como o roteirista, Paul Laverty, promete. É verdadeiro, sincero, a simples e dura realidade de muitos, no filme é na Inglaterra, mas pode acontecer em qualquer lugar.
Como eu ainda não sou muito refinada, estou apenas conhecendo o cinema europeu e, principalmente, o cinema que Cannes gosta, ou seja, artístico, não conheço nem os atores nem o diretor, mas fiz pesquisa, porque vale a pena.
O que mais me surpreendeu foi saber que o ator que faz Daniel, Dave Johns, é comediante. Em hora alguma no filme ele deixou transparecer isso, apesar de ter momentos cômicos, nunca era o foco da cena. Eu me encanto com ator versátil, que consegue te fazer rir por horas, mas também consegue te emocionar com tanta simplicidade.
Outra coisa interessante é a parceria do diretor, Ken Loach, e o roterista, Paul Laverty, “Eu, Daniel Blake” já bem o quarto filme deles. Isso mostra o quão entrosados eles são, um dos motivos da obra ser tão bem estruturada.
Uma coisa que gostei que eles fizeram, que também soube por pesquisa, foi que eles deixaram os atores livres para improvisar. Imagina que para um comediante isso deve ser um presente.
Se você quer um filme reflexivo, para emocionar, mas sem exageros, “Eu, Daniel Blake” é a pedida perfeita.
E ainda dá para se passar de refinada, conhecedor(a) de filmes ganhadores de Cannes que valem a pena.
Beijinhos e até mais.