A ânsia pelo poder e o estado de paranóia no início dos anos de 1950 na antiga União Soviética causou alguns “imprevistos” quando o grande camarada Josef Stalin, um dos ícones históricos por seu posicionamento da Guerra Fria.
Difícil pensar em comédia neste cenário, especialmente quando estudamos todos as consequências ruins do governo de Stalin e de sua linha sucessória, mas o longa “A Morte de Stalin”, inspirado em um livro homônimo, incluiu esse elemento inusitado nesta passagem histórica.
A trama se passa no ano de 1953, quando o governo ditatorial de Stalin estava completava 26 anos de duração e muitas insatisfações, dentro e fora da cúpula de poder, com uma longuíssima lista de perseguidos, torturados, desaparecidos e mortos pelo governo. Ninguém poderia desaprovar o grande chefe da nação, por mais que quisessem que ele deixasse o poder naquela altura do tempo.
Essa obediência cega é vista quando ele manda que a gravação de um concerto fosse enviada para ele (porque ele tinha amado). Porém o concerto não havia sido gravado, então o diretor teve que refazer tudo, trazer o público de volta, ameaçar de morte quem não quisesse refazer a cena, até que a bendita gravação estivesse nas mãos do camarada Stalin.
A pianista, Maria Veniaminovna Yudia, só aceitou porque o diretor a prometeu uma grande quantia em dinheiro, mas insistiu em mandar um “recadinho amoroso” para Stalin. Na verdade ela tinha grande rancor por ele, perdera quase toda a família por ordem dele. E esse recado chegou até ele.
Enquanto isso, o Conselho de Ministro se reunia. O título “camarada” era para todos do partido, era assim que eles se chamavam. Na ocasião estavam Georgy Malenkov, Nikita Khrushchev e Vyacheslav Molotov, os três em uma conversa informal, lembrando de histórias da Segunda Guerra Mundial e se achando heróis (Khrushchev principalmente). Na sala com Stalin estava seu braço direito, Lavrenti Beria, o grande manipulador da ditadura.
Beria era bem comandava as torturas e perseguições, ele era quem tinha acesso a lista dos próximos a serem atacados. Pelas mãos dele muitos foram torturados, estuprados e mortos, mas socialmente era o homem mais equilibrado possível, transmitia a “segurança” que o governo precisava. Além disso, seu poder de manipulação unia os homens do poder e os fazia concordar com qualquer coisa que ele queria realizar.
Ao receber a gravação do concerto (e o recado de Maria), Stalin passar mal e desmaia. A ordem que os funcionários recebem é que, caso isso ocorresse, membros do Conselho de Ministros fossem chamados antes mesmo que um médico. A paranoia do partido comunista fez com que expulsassem os médicos, acreditando que eles conspiravam contra o governo.
Esse era um momento crítico, havia muitos documentos secretos no escritório e a própria situação de Stalin não poderia se espalhar, somente o Conselho deveria decidir como proceder. Virou uma corrida maluca!
O primeiro a chegar foi Beria, seguido por Malenkov e Khrushchev, depois foram chegando os demais. Eles se dividiam em se desesperar falsamente pela morte de Stalin e procurar uma solução, sabendo que o governo precisaria de um sucessor. O mais indicado, por causo do cargo, era Malenkov, mas eles sabiam que se o chefe, antes de morrer, indicasse outro nome, então tudo mudaria. Outra coisa que mudaria seria a confiança que os filhos de Stalin, causando outra corrida quando Svetlana chegou ao local.
Beria ganhou a corrida novamente, mas ele queria Malenkov no poder, o que realmente ocorreu.
Malenkov era o mais apático do Conselho, não havia lutado na guerra e ficava facilmente impactado com as histórias de Khrushchev, mas era altamente fiel aos princípios do partido e de Stalin, acreditava naquela forma de governar e já estava se afeiçoando ao gostinho de poder. Embora Beria tenha conseguido o influenciar até a primeira reunião em que ele comandou.
A essa altura Khrushchev e os demais membros começava a desconfiar de Beria e seus planos. Descobriram algumas das estratégias dele e que alguns dos “camaradas” estavam na temida lista, aquela que designava quem seria preso (e torturado). Como um contra-golpe, essa parte do partido conseguiu desmascarar Beria e matar.
Malenkov continuou no poder por pouco tempo, logo Nikita Khrushchev sobe ao poder e entra na história.
Se você gosta de história assista ele filme e o maior motivo de todos é ver Nikita Khrushchev sendo interpretado pelo grande Steve Buscemi. De tudo que já li de líderes russos e de tudo que já vi de Steve Buscemi eu nunca imaginei em o ver como Khrushchev, muito menos ver esse temido personagem histórico contando piadas para agradar Stalin.
Ele literalmente faz um hi-five com Beria logo no começo. Como imaginar isso? Impossível!
A piada que ele sempre contava, porque era a preferida de Stalin, na verdade era uma história de guerra, em que ele jogava bombas uns nos outros para se aquecerem nas trincheiras.
Avaliem o nível de sadismo de alguém que gostava de contar isso e, principalmente, de quem ria disso!
Não sei dizer se todos os fatos relatados no filme realmente existiram, até porque o partido comunista da União Soviética realmente guarda muitos segredos e, acredito eu, não liberaria muitas daquelas informações. Mas é interessante ver como provavelmente funcionava tudo aquilo e é extremamente importante lembrar os horrores de uma ditadura.
Apesar disso, não é difícil aceitar toda a paranoia vista entre aqueles ministros e a sede de poder deles. Quase 30 anos de poder fazem um líder desgastado e aliados ansiosos para uma mudança a favor deles, logo estratégias internas para que isso ocorresse são completamente possíveis.
A obediência cega também é algo muito forte de ver, seja pela admiração pelo grande líder ou eterno medo de morrer ou de ser perseguido (e aí até a família entra naquela lista). A sorte do diretor da orquestra que apresentou o concerto é que a tal gravação era só de áudio, então eles puderam colocar gente que estava passando na rua para dentro (mais aplausos) e trocar o maestro, porque o principal havia passado mal, mas o atraso foi registrado como desobediência.
Por outro lado, a revolta que crescia entre aqueles sofreram os revezes da ditadura é representada por Maria (vivida por Olga Kurylenko), a pianista foi até designada para tocar no funeral do ditador (sem saber que seria esse o evento). Ela guardava um justo rancor e só concordou em tocar sob ameaça velada vinda de Khrushchev.
E as duas máximas do poder estão entre o estrategista Beria e a marionete Malenkov. Parece ser forte usar o termo “marionete”, mas ao observar a relação entre eles foi é perfeitamente possível notar isso, Malenkov seguia tudo o que Beria dizia, apesar de tentar se mostrar a cima dele.
A escolha dos atores para eles foi perfeita!
Malenkov é vivido por Jeffrey Tambor, famoso e várias vezes premiado pela série cômica “Transparent”, ele tem a expressão certa para alguém na posição desse líder sem liderança, de um homem no governo que nada governa, alguém que se deixa levar pelas opiniões de cada lado. Lembrando que no final Malenkov concorda com o contra-golpe porque Khrushchev faz a cabeça dele!
Beria foi uma surpresa pessoal, não havia reconhecido o ator até ter ido pesquisar quem era. Trata-se de Simon Russell Beale, conheço o trabalho dele em “Penny Dreadful”, um personagem marcante, mas em nada parecido com Beria, começando pela caracterização e os trejeitos. Para mim foi a prova de que ele pode fazer qualquer tipo de personagem, lá na série ele era um amorzinho, cativante e do bem (apesar dos pesares), no filme um manipulador extremamente inteligente, alguém que tinha a União Soviética e, talvez, parte do mundo em suas mãos.
O filme pode até se intitular “A Morte de Stalin”, o nome dele pode até ser citado inúmeras vezes durante todo o filme, mas a trama vai além, mostra o quão intricando era o tabuleiro do poder na União Soviética e como se davam as relações políticas da época (talvez as de hoje também). O personagem de Stalin aparece em pouco mais de 30 minutos e tem pouquíssimas falas, a sua morte é que importa para estar ao seu lado.
É bom rir da desgraça alheia? Não! Sabe-se o quanto o país ainda sofre com alguma cicatrizes da época e devemos pensar bem antes de fazer piada com qualquer tema relacionado. Mas alguém me disse esses dias que usar o humor dessa forma afasta o sentimentalismo e o excesso de drama, fazendo com que analisemos melhor a situação, o que pode ser vantajoso para aprender a lição por traz daquele cenário.
Então faremos assim: aproveitamos que esse elenco maravilhoso (e roteiristas inteligentes) nos presentiou com essa obra prima e aprenderemos um pouco mais sobre a história russa! Posso contar com vocês?
Beijinhos e até mais