A nossa mania brasileira de achar que os estrangeiros produzem melhores estórias pode nos cegar, fazer com que deixemos de notar as mentes brilhantes nascidas e criadas aqui no país, vindo de qualquer de nossas regiões e estados.
Se tem um autor que representa o talento brasileiro na dramaturgia, além de comprovar o talento e inteligência dos nordestinos, esse autor é pernambucano Ariano Suassuna. Você pode o conhecer por um dos melhores filmes brasileiros, “O Auto da Compadecida”, mas havia muito mais estórias em sua mente brilhante.
Suassuna tinha o hábito de compartilhar causos, muitas vezes inventados, em suas entrevistas e palestras, muitas delas disponíveis em vídeos espalhados pela internet. A escritora Tatiana Maciel e os roteiristas João Falcão e Célio Porto colheram alguns desses causos e criaram quatro esquetes, uniram tudo e disso resultou em “O Auto da Boa Mentira”, dirigido por José Eduardo Belmonte.
O longa é da Globo Filmes e tem como produtor assistente Guel Arraes, que dirigiu “O Auto da Compadecida”, cuja estreia foi no dia 06 de maio, graças a distribuição da Imagem Filmes.
Essas quatro estórias têm algo em comum, a mentira, e é o próprio Suassuna que explica seu encantamento com a mentira, dizendo que é uma boa forma de ele contar causos, mesmo saindo pouco de casa.
Como ele mesmo aparece no filme? Entre os esquetes podemos ver trechos dessas entrevistas e palestras com Ariano Suassuna, como se ele validasse a obra.
O primeiro esquete é focado em Helder, um gerente de RH comum, que chega ao um hotel de luxo para uma conferência sem conhecer ninguém, mas acaba sendo confundido com um comediante de stand-up que faria um show nesse mesmo evento. De começo ele estranha, recusa a comparação, depois ele vai vendo as vantagens de aceitar esse “papel”.
Mas, lógico, que não seria tudo tão fácil, ele acaba sendo raptado por uma jovem que busca se vingar do tal comediante, ela era Caetana. Felizmente ele consegue desfazer o mal-entendido, salva-se da vingança dela e ainda tem um final de semana de tratamento VIP.
Além das muitas histórias de pessoas desacostumadas com o ambiente, que geralmente chamamos de “matuta” (o que nem sempre é legal), nesse esquete também é possível ver a referência direta de uma história aparentemente real ocorrida com o próprio Suassuna. É a presença das gêmeas Whemytta e Wheydja … Já ouviram falar? Vou deixar no suspense, para vocês curtirem na hora do filme.
Quem interpreta Helder é Leandro Hassum, que aproveita muitas das piadas dele mesmo, incluindo as que fazem referência a sua perda de peso. Caetana é vivida por Nanda Costa, as gêmeas são gêmeas na vida real, são elas Michelle e Giselle Batista. O ato ainda conta com a participação de Rocco Pitanga.
O segundo esquete é uma memória afetiva, a relação do Circo com cidades pequenas antigamente. Fabiano cresceu conhecendo o Circo de Reino, porque sua mãe, Luzia, levava o menino sempre que estavam pela cidade. Já adulto, ele se vê tendo que resolver um assunto chato com a mãe, a compra de um jazido para “re-enterrar” o pai, que morrerá uns 30 anos antes.
Andando pela pequena cidade, o cético Fabiano se esbarra com um estranho, um profeta, ele dizia que o pai do moço não tinha morrido, estava vivo e trabalhava no tal circo, a ossada que esperava o jazido era do marido da mãe. Logo ele entendeu que estava falando do Palhaço Romeu.
Esse moço que não acredita em muita coisa, mas uma profecia fez duvidar da mãe, é vivido por Renato Góes, a sua mãe, Luzia, é interpretada lindamente por Cássia Kis. O profeta é vivido por Carlos Gregório e o “atual” Palhaço Romeu por Jackson Antunes.
O terceiro esquete é localizado no Rio de Janeiro, mas o protagonista é um inglês “domesticado”, Pierce. Ele se considera tão carioca que se tornou guia turístico, e é influente na favela onde vive e leva os gringos para visitar. O pronto principal é o bar de Zeca, que considera Pierce como família.
A questão é que Pierce já aprendeu o jeitinho brasileiro de ser, no pior dos sentidos. Embora ele considere amigo de Zeca, ele inventa uma desculpa para não comparecer a uma confraternização dele, disse que foi assaltado. Zeca, por outro lado, faz parte da magra parcela de brasileiros que não usam o jeitinho brasileiro, e acreditou na desculpa, recorrendo Chefia, dono do morro, para que mais assaltos não acontecessem.
Será que isso deu certo? Como não darei spoiler, digo só que o elenco é incrível. Zeca é vivido por Serjão Loroza, Chefia por Jesuíta Barbosa (e seus olhos extremamente expressivos) e o gringo Pierce é realmente inglês, trata-se do ator Chris Mason.
O quarto e último esquete é baseado, dentre outras histórias, em um jantar que Suassuna foi convidado, momento em que escutou a anfitriã “dividindo” a população entre aqueles já foram a Disney e aqueles que não foram.
A estória é ambientada em uma agência publicitária, focada em quem não era vista por ninguém, a temporária Lorena. Ela tentava a todo custo chamar atenção para si, assim conseguiria ter mais destaque e respeito, mas ela tinha uma sinceridade e ingenuidade que não combinavam com a guerra de egos dentro da empresa. Ah, ela era apaixonada por um dos chefes, Felipe Porto.
Surpreendentemente, ela foi convidada para a confraternização de Natal da firma, na casa do chefe, Norberto Cardelli. Lógico que ela tenta se esforçar mais, é aí que ela finge conhecer artistas estrangeiros, descobre que num é ninguém porque nunca foi a Disney e desencadeia uma briga generalizada por um comentário inesperado. Mas o melhor é o discurso final, já com muito champanhe no juízo, permitindo que toda sua sinceridade viesse à tona.
Lorena é vivida por Cacá Ottoni (ela ainda é um pouco desconhecida, mas fez um bom trabalho em “Amor de Mãe”), Norberto é interpretado por Luiz Miranda e Felipe por Johnny Massaro. Ainda se conta com a participação de Letícia Isnard.
Um detalhe interessante desse último esquete é o uso da linguagem visual para mostrar o quão Lorena passa despercebida. Não se fala a idade dela, mas ela já é adulta, mas parece ser mais nova e é bem baixinha (a atriz tem 1,57m), enquanto todos os outros funcionários parecem ser jogadores de basquete.
No geral é um filme muito divertido, não tem muito dos lugares comuns de filmes brasileiros (palavrão e sexo), e tem muito da essência de Ariano Suassuna, mesmo que as estórias de fundo tenham sido mudadas ou adaptadas.
Foi engraçado que eu pouco tinha ouvido falar do filme antes de o assistir, mas passei todo tempo lembrando da minha mãe e do meu tio (e padrinho), que assistem essas entrevistas de Suassuna como se fossem o “filme de conforto”, eu já tinha ouvido alguns causos por causa disso.
Ainda não desbanca “O Auto da Compadecida”, que deveria ser mais conhecido e valorizado pela genialidade de seu texto e maestria na atuação de todo o elenco, mas “O Auto da Boa Mentira” rende boas risadas, algumas reflexões e, só de valorizar Ariano Suassuna, tem um valor inestimável para a cultura brasileira.
Até Mais.