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FILMES CRÍTICAS

O Iluminado (1980). O medo criado por King e revisto por Kubrick.

O Iluminado (1980). O medo criado por King e revisto por Kubrick.
  • Publicado em: novembro 9, 2019

Com uma cena inicial onde os créditos surgem na tela, contrariando o que ocorre hoje, o filme tem uma tomada aérea grande que serve para mostrar o quão distante é o local onde a família ficará. Há um isolamento que remonta a um local de paz, uma localidade onde pessoas vão para descansar e pôr os pensamentos em dia.

Chegamos a um suntuoso hotel chamado Overlook. Nele está Jack Torrance (Jack Nicholson), um homem que pretende uma vaga de emprego. O único porém neste emprego é o isolamento proporcionado por um inverno de cinco longo meses. Jack fica a par de um homicídio triplo praticado por um ex-funcionário que matou a família, incluindo duas meninas, mas isso não o impressiona.

Neste ínterim, o filho de Jack brinca e conversa com a sua mãe, Wendy (Shelley Duvall). O menino se vale de um “amigo imaginário” para conversar e quer apenas brincar, porém ele tem visões daquilo que o aguarda no hotel. O Amigo Imaginário, chamado Tony, é o primeiro a alertar a criança sobre alguns problemas no hotel. Problemas sérios e assustadores.

O diretor Stanley Kubrick se vale de um jogo de câmera interessante e a inclusão de cenas fortes para preparar o público para as dificuldades que o hotel apresentará. Wendy e Jack querem e precisam desse emprego para estabilizar a renda, além de fornecer a Jack o tempo necessário (e a paz) para escrever seu livro.

Danny (Danny Lloyd), o filho, tem uma aparente conexão com algumas aparições. Ele vê o que ninguém mais enxerga. Mas ele não é o único. Um dos funcionários do hotel, o cozinheiro Dick Hallorann (Scatman Crothers), tem os mesmos dons que Danny. Dick é um “iluminado” e tenta alertar o garoto sobre possíveis problemas no hotel. O diálogo é intenso, interessante e muito bem construído. Até este momento, pude perceber uma ótima condução do elenco e, ainda, a fluência entre as personagens de Dick e Danny.

Jack tenta escrever e falha. Falta a inspiração necessária para produzir seu texto, mas insiste nisso. Enquanto isso, Wendy e Danny tentam se divertir. A parceria entre mãe e filho é tocante e nos mostra o quanto eles se amam, mesmo em um lugar quieto, isolado e frio. Neste ponto somos apresentados ao labirinto do hotel, um grande jardim que se mostra dificílimo de sair. Em uma demonstração do poder narrativo, o diretor Stanley Kubrick se vale dessa cena para realizar uma das transições que já fazem o filme valer a pena, além de embutir uma trilha sonora que assusta quando interrompida.

Há algo muito errado com Jack, podemos perceber. O tempo passa e ele vai se tornando mais seco com Wendy. Sua obsessão por escrever só é interrompida quando ele contempla a própria família ao longe, uma contemplação que irradia maldade. Em algumas passagens, o simples close na face de Jack Nicholson serve para evidenciar que algo ruim o cerca.

A esta altura o espectador já tem ciência de que há malignidade no quarto 237. Danny sente isso e se mantém a distância. As várias passagens de Danny com seu triciclo são dramáticas por apresentar uma trilha sonora sufocante e um jogo de câmera excelente que dá a impressão de estarmos atrás do menino o tempo todo.

A nevasca persiste e encontramos Danny e Jack em uma conversa de pai para filho. Danny aparenta ter a vontade de contar sobre o que ocorre no hotel, mas ele se mantém em silêncio. Jack está com seu filho no colo. Nós temos a nítida sensação de que Jack é um lobo e Danny um cordeiro. As falas de Jack são fortes, ao passo que Danny responde quase sempre com uma única palavra. Há medo no coração do menino… e no coração de quem assiste à cena.

Wendy e Danny estão com medo. Jack não crê em suas palavras, porém é atormentado por pesadelos. Para descobrir o que assusta Danny e também o que o machucou, Jack entra no quarto 237 e se depara com uma bela e nua mulher. Em contrapartida, Dick tem premonições sobre a família Torrance que o fazem tremer.

Novamente peço que atentem para a inclusão de sons que deixam a tensão impregnada em quase todos os momentos do filme.

Jack presencia o mal que habita o hotel e não confessa isso à esposa. Ele quer permanecer lá, não importa o preço a ser pago. Ele conversa com pessoas imaginárias, talvez fantasmas, e interage com elas. Essas “sombras” de pessoas querem que Torrance faça por eles o mal. Apesar de alguns, como o bartender Lloyd,  se valer de uma conversa amigável, calma e sempre baixa, fica fácil para o espectador compreender que ele é tão caçador quanto Jack.

As tomadas com profundidade são o ponto alto da obra e mostram os corredores (que parecem ser também um gigantesco labirinto) onde tudo é possível surgir. Essa sensação de “profundidade” parece jogar Jack em uma queda, quase um abismo. Outro ponto genial na obra está nas cores usadas nos ambientes. O Salão Dourado (Gold Room) é quase cinza em sua totalidade, enquanto o banheiro dele tem o vermelho como predominante. Há ambientes onde o tom amarelado traz uma melancolia consigo e cria um aspecto fantasmagórico a quem neles esteja.

Em certo ponto da narrativa ficamos em dúvida se Jack está delirando ao ver e conversar com mortos ou se está apenas enlouquecendo. Mas o mais provável é que os mortos queiram que ele realmente enlouqueça e passe a compor o rol dos “empregados” do hotel. Algo similar a uma maldição.

E já que falamos de uma produção de 1980, é preciso frisar que essa era uma época onde as palavras eram pouco comedidas. Sendo assim, não se surpreendam com uma mulher sendo humilhada pelo marido, dois indivíduos falando sobre um homem com desprezo por sua pele negra, além de uma loucura que só poderia ter vindo da mente de Stephen King.

https://noset.com.br/cinema/doutor-sono-doctor-sleep-muito-mais-do-que-a-continuacao-de-o-iluminado/

“All work and no play makes Jack a dull boy.” – Todo trabalho e nenhuma diversão fazem de Jack um bobão.

A loucura abraça Jack. A maldade o engolfa e o transforma em um caçador, um predador que acua a presa e a observa com deleite enquanto cheira seu medo. Wendy está horrorizada, confusa com a mudança radical do marido. Ela não quer feri-lo, porém está ciente que ele matará ela e Danny. Esse é um ponto onde a atuação da atriz Shelley Duvall se destaca. O medo e o terror vividos por ela são tangíveis.

Jack Nicholson, por sua vez, consegue nos fazer acreditar que o mal presente no hotel Overlook o mudou de um pai dedicado para um assassino cruel e sádico. Torrance é a encarnação da loucura e do potencial destruidor dos homens, fato que ganha mais força com os trejeitos e a atuação de Jack Nicholson. Provavelmente esse filme sofreria com incontáveis boicotes e cortes caso fosse exibido em nossa época, pois a jovem mãe Wendy é humilhada por Torrance e ameaçada em seu ponto mais vulnerável: o filho. O descaso obtido pela interpretação de Jack dá uma ideia do potencial ofensivo e mortífero da personagem dele.

O final da história é primoroso e traz ao público uma tensão incomum, mesmo em filmes de terror. Kubrick não se vale dos famigerados “jump scare” para trazer medo, uma vez que a trama em si é suficiente para isso.

Com atuações memoráveis, um clima de terror e drama constante, cenas que fazem parte da história do cinema e uma trama muitíssimo bem construída por Stephen King e dirigida por Stanley Kubrick, O Iluminado é um marco do cinema que precisa ser visto, seja você fã ou não de King e Kubrick.

Here´s Johnny!

P.S.: só para evidenciar a importância deste filme, deixo um trecho de Jogador nº 1 onde várias passagens de O Iluminado são reproduzidas, além de uma imagem de Toy Story 3 com o carpete do Hotel Overlook.


Written By
Franz Lima

Escritor de contos de terror e thrillers psicológicos, desenhista e leitor ávido por livros e quadrinhos. Escrever é um constante ato de aprendizado. Escrevo também no www.apogeudoabismo.blogspot.com