O Idiota, de Dostoiévski, nos quadrinhos de André Diniz.
Melhor é ser infeliz e saber a verdade,
do que ser feliz e viver.., nas nuvens.
(Fiódor Dostoiévski, O Idiota,)
Como adaptar a prosa densa de Dostoiévski para os quadrinhos? Como fazer os longos diálogos e reflexões de uma obra do tamanho e da complexidade de O Idiota traduziram-se em imagens. Mais. Como fazer reduzir estas imagens aos traços econômicos das xilogravuras típicas da literatura de cordel?
Pergunte para André Diniz, o ilustrador e quadrinista que conseguiu realizar esta façanha para o selo Quadrinhos e Cia. da Companhia das Letras.
Antes de entrar na obra de André, acho interessante contar uma pequena história para situar o leitor que nunca leu Dostoiévski. E, vamos falar a verdade, poucos leram, apesar de ele ser uma “figurinha carimbada” nas listas de melhores escritores de todos os tempos.
Conheço alguém que se atirou à empreitada de ler Crime e Castigo, outra das grandes obras de Dostoiévski e, talvez a mais conhecida, durante a sua gravidez. Ela ficou submersa por meses naquele drama/suspense subjetivo, circular e sufocante, que te traga para dentro do sofrimento, autopunição e lenta loucura de Rodion Românovitch Raskólnikov. Determinada a terminá-lo, prosseguiu sofrendo página a página, até alcançar o final. Depois, ateou fogo ao livro. Não conseguia mais o ver na estante, sem lembrar o que ele lhe provocara.
É desse tipo de escritor, do tipo que consegue provocar reações emocionais com tal intensidade, que estamos falando. Alguém com um escrita densa, discursiva, prolixa e, ainda assim, envolvente.
Além da ousadia de traduzir a obra em ilustrações, André fez outra opção, que tornou o seu trabalho ainda mais difícil. Economizou ao máximo no uso de texto. Há um ar de “cinema mudo” que permeia a adaptação, exigindo do leitor atenção aos detalhes de cada imagem, para poder compreender as reações dos personagens e o desenrolar do drama.
A história tem como protagonista o Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin. Inicia com ele internado em um sanatório, em vista dos seus constantes ataques epiléticos. Órfão, Míchkin foi criado por um amigo do seu pai e que também falece no início da obra. Depois da sua alta, o príncipe parte para encontrar sua única parente viva, Lizavéta. Conhece, então, Parfion Rogójin, com quem manterá uma relação de amizade e conflito no correr de todo o romance, e Nastássia Filíppovna, a triste e linda mulher que gera paixões e desejo por onde passa.
Míchkin é um personagem construído para ressaltar, com suas qualidades, os defeitos da sociedade russa. De bondade e ingenuidade extremas, o príncipe é tido como um “idiota” por muitos dos que convivem com ele. Dostoiévski trata bem da linha tênue que separa a genialidade (neste caso de ordem moral) e a imbecilidade. Sempre resta uma dúvida se os atos de Míchkin são tolos ou sábios. Há referências claras e, inclusive, referidas na própria história, a Dom Quixote e Cristo.
A figura de Míchkin teve profunda influência na cultura popular. Um dos melhores exemplos é o jardineiro Chance, interpretado por Peter Sellers no filme “Muito Além do Jardim” [Being There, 1979]. Durante a história, não há uma definição se o jardineiro analfabeto é um gênio ou um idiota. Por sua atuação como Chance, Peter Sellers foi nominado ao Óscar de melhor ator e ganhou o Globo de Ouro.
A adaptação para os quadrinhos possui um bom prefácio escrito por Bruno Barreto Gomide, chefe do departamento de Russo da Universidade de São Paulo. Nele, tem-se um panorama da vida e da obra de Dostoiévski, assim como dos diversos pontos que ligam Míchkin à vida do próprio autor, ele mesmo um epilético, cristão ortodoxo e crítico dos valores sociais.
Ao final, não posso deixar de ressaltar ter sido surpreendido com a capacidade de André Diniz de traduzir, em suas ilustrações, um romance tão complexo e extenso. Essa adaptação é uma proeza artística, indo muito além de uma porta para que novos leitores conheçam esse clássico da literatura universal.