NoSet no 52º Festival de Cinema de Gramado

Gramado, no Rio Grande do Sul, remete à serra, frio, Natal, chocolate e vinho. Essa mini Europa de plástico encravada no interior do estado, que mais parece uma mini Disneylândia, tamanha diversidade de parques e atrações distintas, nos oferece cinema, arte e um resistente festival. Falo do Festival de Cinema de Gramado, que chega a incríveis 52 edições. Em um país onde fazer cinema e arte no geral é quase de um masoquismo intratável, por 10 dias, a cidade recebe desde longas nacionais com atores consagrados a curtas com promissores sonhadores com uma câmera na mão (ou hoje em dia, um celular). Esse ano o NoSet esteve presente em dois dias do ainda glamuroso e essencial Festival.

E sobre o glamour, não dá pra negar que um tapete vermelho cortando uma rua, com o povo podendo ver as celebridades passarem por lá, num calor humano esquentando um frio congelante, é um plus pro festival. Ainda mais em um ano tão difícil para os gaúchos com a catastrófica enchente que ainda deixa suas marcas e cicatrizes, mas que com muita resiliência, vontade e união do povo (nem aeroporto temos atualmente) em prol do cinema, são obstáculos superáveis. 

Mas falando de cinema, esse ano, para abrir o festival na noite da sexta-feira, tivemos a exibição do longa de Karim Ainouz, Motel Destino, que já tinha sido exibido e muito aplaudido em Cannes. O longa é um suspense erótico, em que um motel é o cenário  para um tórrido triângulo amoroso entre Dayana (Nataly Rocha), Heraldo (Iago Xavier) e Elias (Fábio Assunção). Um verdadeiro noir cearense, com cenas fortes, simbolismos, sexo e violência (crítica em breve), abriu com chave de ouro o festival.  Mesmo fora das disputas, a equipe do filme estava lá, com exceção do Karim, e assistir à sessão numa poltrona à frente do trio de atores é uma experiência magnífica. Ali vemos o quanto é a tensão e a expectativa que eles criam sobre as reações do público. Se em Cannes o filme foi aplaudido por exagerados 12 minutos, aqui tivemos menos tempo, logicamente, mas uma calorosa   ovação.

No segundo dia, sábado dia 10, tivemos a exibição dos curtas gaúchas. O popular gauchão cinematográfico, que é a mostra competitiva dos filmes do Rio Grande do Sul. Dividida em dois dias de oito obras para cada, assisti a primeira tarde. Dos oito, numa visão de crítico, uns quatro eram extremamente descartáveis e aborrecedores. Me surpreende o excesso de pretensão de certos diretores, com filmes confusos misturando documentários com ficção, planos arrastados, tomadas artísticas demais. Parece que temos uma geração querendo fazer Tarkovski em 20 minutos de exibição. Talvez seja uma das causas por que o cinema brasileiro que quer tanto imprimir pretensa qualidade tenha tanta dificuldade de dialogar com o público e fracassar nas bilheterias, mas papar festivais. Falando dos filmes, destaque para Pastrana, com uma edição primorosa, mas uma narração enfadonha. Cassino, com diálogos sensacionais entre três amigos, mas que se perdeu em pretensão em tomadas inúteis e também o mais bem acabado Zagerô, com edição de som e imagens de ponta e um tocante monólogo de Victor di Marco. Os outros cinco realmente não me passaram muita coisa. Domingo não vi os outros oito. Então fico com a primeira e fraca tarde de sábado.

Enfim, chega o fim de tarde e início de noite de sábado, onde realmente começa a mostra competitiva em Gramado. Uma noite de empoderamento feminino. O elenco do novo longa da genial Anna Muylaert. Com um time com Grace Gianoukas, Cristina Pereira, Irene Ravache, Katiuscia Canoro, Louise Cardoso, Ítala Nandi, Priscila Marinho, Shirley Cruz, Maria Bopp, Luís Miranda, Rafael Vitti e Tales Ordacgi. Uma constelação de grandes atores passaram pelo tapete vermelho naquela gélida noite gramadense. O filme é uma distópica inversão de papéis na sociedade, em que poderosas mulheres fazem papel dos tipos mais desprezíveis de homens, e os homens é que sofrem calados nesse cenário. Um clube de mulheres bem sucedidas, onde corrupção, hipocrisia, assédio, dinheiro e aparências são o mote, mas algumas onças perdidas prometem acabar com essa festa. Uma excelente reflexão de como seria o patriarcado passando o cetro para as mulheres e de como o poder poderia também estragar tudo. Um filme corajoso, com uma premissa sensacional, mas que o surrealismo nonsense ou amalucado da diretora (que não é novidade, lembrando de seu Durval Discos), acaba não acabando bem uma ideia sensacional. Um filme médio, mas que gerará um bom debate e reflexão pela ousadia da ideia central. Em breve crítica.

E o festival teve na noite de sábado como homenageado Matheus Nachtergaele. Com quase 30 anos de serviços prestados para o cinema, brilhante ator, roteirista e realizador, ele encanta por sua simplicidade e dedicação à arte. Vencendo o troféu Oscarito pelo conjunto da obra, imortalizada em filmes como O Que é Isso Companheiro, O Auto da Compadecida, Cidade de Deus, Amarelo Manga, Baixio das Bestas, dentre vários outros e diretor do cult  A Festa da Menina Morta, Nachtergaele fez um emocionado discurso, comparando um filme a uma oração, e teatros e cinemas como sendo templos onde se conectam pessoas através da experiência de compartilhar a arte. Teve tempo de declamar Eros e Psique, de Fernando Pessoa, em um momento memorável da noite. Fortemente aplaudido, ainda elogiou a força do povo gaúcho abatido pela enchente e a resistência do festival de Gramado onde afirmou ser a morada de todos.

Fechando a noite, tivemos o prazer de assistir em primeira mão o primeiro capítulo da série Cidade de Deus – A Luta Não Para. A continuação em forma de seriado de um dos melhores filmes da história do cinema, Cidade de Deus, de 2002. Com direção de Aly Muritiba, vemos o que ocorreu com os personagens (os sobreviventes) do filme 20 anos depois, tendo como personagem principal Buscapé (Alexandre Rodrigues), hoje um fotógrafo policial de renome e que acaba voltando à Cidade de Deus, hoje em dia mudada, mais pacificada por Cúrio (Marcos Palmeira) e tendo como referência na comunidade o líder da favela Barbantinho (Edson Oliveira). Pelo primeiro episódio podemos ver que a frenética e sensacional montagem segue o nível do filme, as narrações scorsecianas de Buscapé  continuam a contagiar e a violência e o retrato da comunidade, com aquele clima tipo exportação que Fernando Meirelles e Kátia Lund criaram há 22 anos, ganham novo fôlego num ótimo primeiro episódio de uma série que promete.

O 52º Festival de Cinema de Gramado começou em grande estilo, com bons filmes, muita arte, um homenageado e tanto e elencos emocionados e ansiosos, além de duas noites de lotação esgotada, algo lindo de se ver num cinema daquele tamanho. Fica na expectativa dos cinco outros filmes da competição, a premiére do novo filme de Jorge Furtado em co-direção com Yasmin Thayná, Virginia e Adelaide, que fechará o Festival. Gramado, por 10 dias, respira cinema e arte, e agora estritamente com obras nacionais, é um respiro para o lutador cinema brasileiro. E por mais que minha estadia por lá tenha sido curta, valeu cada minuto vivido, onde emergimos no clima embriagante da arte. Vida longa ao Festival de Cinema de Gramado e ao cinema nacional, que por mais que os detratores ainda insistem em derrubar, brilha ainda num céu cheio de estrelas e o Festival é uma prova disso tudo.

 

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