Ney Matogrosso apresenta Bloco na Rua em Porto Alegre
Costumo dizer que o Brasil é um celeiro de grandes músicos, compositores, cantores e cantoras, mas os que conseguem ultrapassar essa definição e serem considerados artistas, temos muito poucos. Caetano Veloso é um deles, um cara que se reinventa, ousa, provoca e não se encolhe na função de transgredir com a arte. Mas existe outro que, com extrema segurança, posso cravar que representa tudo isso e faz do palco seu habitat, para com seu público, exalar sua divina arte. Esse é Ney Matogrosso. Ney Matogrosso, além de incansável e com vigor juvenil, é um artista que sempre foge do óbvio. Desde o início, nos Secos e Molhados, um dos grupos mais inventivos que esse país já produziu, até sua consagrada carreira solo, Ney canta de tudo, dançou, provocou, ousou e mostra que a cada ano temos o privilégio de acompanhar esse verdadeiro artista da música brasileira. E Porto Alegre esteve na sua rota sexta passada, mais precisamente, o andrógino e hipnótico Ney pousou na nave que é o Araújo Vianna e apresentou seu espetáculo Bloco na Rua, em uma memorável noite em que o NoSet, logicamente, estava lá e nas próximas linhas conta como foi seguir esse bloco.
Com a casa abarrotada de gente, com um público atemporal e uma expectativa enorme, por volta das 21h15min, eis que surge a banda de Ney e ele, com um figurino criado por Lino Villaventura, uma peça colada ao corpo, quase como uma armadura e descalço, adentra o palco com um capuz cobrindo seu rosto, e ao chegar na frente da plateia, abre o fecho e revela o rosto e começa com Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua, sucesso de Sérgio Sampaio, já provocando êxtase na plateia. Segue aflorando sua veia rock e faz a homenagem à grandiosa Rita Lee, com os Jardins da Babilônia, que antecede sua versão de O Beco, dos Paralamas do Sucesso, com o naipe de metais reproduzindo fielmente o arranjo original. Um começo arrasador e intenso, com três petardos musicais, onde Ney mostra toda sua impecável voz e um fôlego invejável, dança, pula, requebra e principalmente, hipnotiza seu público.
O espetáculo segue com a ótima Já Sei, de Itamar Assumpção e é emendado com Pavão Misterioso, super sucesso de Ednardo, da década de 1970, uma época em que o próprio Ney transgressor era considerado um pavão rodeado de mistérios. Tua Cantiga, lindíssima canção de Chico Buarque, segue o set list em mais uma interpretação incrível do cantor. Ney então puxa um banco e se escora nele, com o que ele fez, em seis músicas, muitos cantores de 40 anos já estariam com oxigênio nos bastidores, de tanta intensidade e entrega que o cantor nos apresentou. Ney e sua banda puxam A Maçã, de Raul Seixas, em mais uma magistral e única interpretação, o mesmo seguindo com Yolanda, mostrando toda a doçura de sua voz e a prova que Ney sabe como poucos usá-la para qualquer momento do show.
Chega o momento do show em que relembra suas parcerias dos anos 1970 com o cearense Raimundo Fagner e ataca com duas maravilhosas canções, a primeira Postal de Amor, com um arranjo emocionante da banda e mais uma visceral interpretação do artista, que aproveita e emenda Na Ponta do Lápis, mais uma do compacto que gravou em 1975 com o Fagner, em um momento emblemático do show. Ney Matogrosso, além de ter o dom de ter umas das vozes mais bonitas do Brasil, tem a sensibilidade de transformar cada música que canta em uma obra-prima. Mesmo canções mais lado B ou desconhecidas, na sua voz e no arranjo da banda, qualquer música tem um quê de novidade interessante, e todo o show é uma experiência única e nada cansativa. Corista de Rock, a próxima canção do show, é uma lado B da Rita Lee, e a seu modo, transforma a música, fazendo transparecer que é um sucesso que sempre esteve na boca do povo. A banda que acompanha o artista é um capitulo à parte, contando com um dream team, como Dunga no contrabaixo, Mauricio Negão na guitarra e violão, Aquiles Moraes no trompete e Everson Moraes no trombone, a lenda Marcos Suzano acompanhado do ótimo Felipe Roseno na percurssão e com a direção musical e teclados do genial Sacha Amback, poucas vezes vi uma reunião de tantas feras juntas no palco do Araújo. Além de uma equalização incrível de som, no ponto, e mesmo em momentos mais intensos dos arranjos das canções, a voz de Ney era o principal, mas com a banda jamais ficando em segundo plano.
Já Que Tem Que, de Itamar Assumpção (a segunda do compositor paulista), é a próxima do show que antecede O Último Dia, sucesso de Paulinho Moska, em mais uma magistral e carimbada interpretação do cantor. A única música inédita do show é Inominável, de Dan Nakagawa, sensível letra ilustrada pelo telão projetando imagens do universo. Mas é com Sangue Latino, sucesso daqueles rapazes que com os rostos pintados nos anos 1970, mexeram com um país sangrado pela ditadura com sua arte e transgressão popular, que fez o auditório levantar e dançar, cantando a inesquecível canção dos Secos e Molhados, o início de tudo na carreira de Ney Matogrosso.
O cantor então anuncia que o show tecnicamente acabou, mas que iria tomar uma água e voltaria em instantes. Nem um minuto se passou, já estavam de volta, e sentado no seu banco alto, faz uma sensível interpretação de Como Dois e Dois, de Caetano Veloso, em um momento (mais um) apoteótico do show. Poema, de Roberto Frejat (outro afilhado do cantor), é mais um momento sublime do espetáculo, com uma sensível, porém intensa, interpretação de Ney. Aí, com a plateia de pé, na frente do palco, a banda ataca de Ex-Amor, samba de Martinho da Vila, com Ney indo à beira do palco, sambando e comandando a massa. Para encerrar, aquela canção que para quem, como eu, conheceu aquela figura única, andrógina, misteriosa e performática nos anos 1980, sintetiza o cantor da época, a provocativa Homem Com H, de Antonio Barros, e que se tornou um ícone do cancioneiro nacional. Ney dança, rebola, pula, fita a plateia, sorri e literalmente comanda a massa em um final apoteótico, ovacionado de pé por muito tempo, ainda foge do script e diz que Porto Alegre sempre arrasa e com os pedidos insistentes da galera por um bis ainda tem a sensibilidade de voltar ao palco e dizer que tudo que foi ensaiado era aquilo que foi apresentado, o que impossibilitaria um bis, momento de classe e sintonia com sua plateia.
Sem sombra de dúvida, o show de Ney Matogrosso foi um dos maiores que presenciamos em dezenas de coberturas que fizemos para o NoSet nesses anos. Ney é hipnótico e apaixonante, mantém a seriedade artística mas sem empáfia, sem cara fechada e estilo blasé. Tem uma voz contagiante, impecável e sabe usá-la como poucos, sua forma física invejável e performance de palco, que sempre foram sua marca, encantam a plateia. Sua banda é sensacional, conseguindo ter um punch de rock e pop aliado às canções mais sutis e a escolha de repertório é de um acerto bárbaro, com todas as canções funcionando e fechando um quebra-cabeça sonoro de altíssima qualidade. Como falei antes, o cantor tem o dom de transformar qualquer canção em uma obra de arte, não tendo momentos baixos no seu show. Bloco na Rua encantou os gaúchos, que saíram felizes naquela noite de sexta-feira, de terem o privilégio de um artista de verdade, que a cada ano que passa de sua longa carreira, nunca se limitou com o óbvio e o confortável, sempre surpreendendo a cada novo espetáculo, e a nós, como testemunhas oculares e auditivas dessa história, resta aplaudirmos e ter o orgulho de ter um Ney há tempo marcando e encantando gerações.
Crédito das fotos: Vívian Carravetta