Não sei se vocês têm o conhecimento, mas há algumas atitudes e comportamentos que podem soar extremamente ofensivos para outras culturas. Por exemplo: não aponte o polegar para cima (o “joinha”) na Austrália, já que isso é considerado um gesto obsceno; mover a cabeça na lateral para um lado e o outro significa, no Irã, um “sim”; no Japão, dar um relógio para alguém é sinal de mau agouro, morte; em países muçulmanos, via de regra, é muito ofensivo olhar nos olhos de uma mulher. Há muitos outros fatos a serem observados e compreendidos. No entanto, estes apontados servem apenas como ilustração para destacar o nível de diferença cultural entre os vários povos e países. O que é considerado legal, lícito em uma localidade pode, por sua vez, ser visto como um gesto obsceno ou desrespeitoso.
Midsommar – O Mal não Espera a noite é o mais novo filme de Ari Aster (Hereditário) que foca muito nesse desconhecimento (e no desrespeito) das tradições e costumes de outros povos. Para que sua leitura seja menos dispersa, vamos ao trailer e, depois, o review completo da obra.
Suspense ou terror?
Midsommar não tem um foco específico, ainda que transite a todo momento nos dois gêneros e também no drama psicológico. A trama aborda o relacionamento complexo de Dani (Florence Pugh) e seu namorado Christian (Jack Reynor). Dani é uma mulher problemática e que sofre com os sumiços da irmã e a preocupação com os pais que moram com a irmã dela. Para piorar, os dramas de Dani são minimizados pelos amigos de Chris que a consideram um fardo que não precisa ser carregado.
Mas diante de tantas complicações, o que poderia piorar para Dani? Muita coisa, inclusive a morte da irmã e dos pais de uma forma traumática, impactante e que remeteu brevemente a alguns dos mortos de Seven, os Sete Crimes Capitais.
Por intermédio dessa tragédia, Dani e Christian ganham uma nova chance de melhorar o já instável/fragilizado relacionamento. Christian contraria os pedidos dos amigos Mark (Will Poulter) e Josh (William Jackson Harper) que veem na garota uma barreira para que ele continue a viver livremente, mas Chris não consegue ficar alheio ao sofrimento imposto a ela após a morte dos pais e da irmã. Como se para compensar, ele a inclui em uma viagem para a Suécia, onde participarão e estudarão uma comunidade durante o solstício de verão, o Midsommar do título.
A viagem será decisiva para o prosseguimento do relacionamento e, provavelmente, a última chance que o casal terá para apagar velhas mágoas.
Uma nova cultura.
O grupo composto por Dani, Christian, Mark e Josh parte para a Suécia acompanhado por Pelle (Vilhelm Blomgren), um sueco que estuda nos Estados Unidos em um regime próximo ao intercâmbio. Pelle será o anfitrião dos amigos em sua comunidade natal, Haarga, um lugar paradisíaco que está isolado da tecnologia e cujo maior patrimônio é a preservação de costumes ancestrais. Haarga é uma comunidade constituída apenas por pessoas vestidas de branco que, aparentemente, vivem em harmonia com a natureza e em plena paz. Homens e mulheres de aparência impecável que trabalham em prol da comunidade e da autossuficiência. Em suma, um verdadeiro paraíso.
Mas é preciso lembrar que até no Paraíso existem regras…
E quanto ao título acima, cabe lembrar que as definições de “nova” e “cultura” são relativas, pois a novidade é pertinente quando o assunto é direcionado aos visitantes, mas é totalmente comum para os que lá vivem. Já a cultura é aquilo que une pessoas através de atos e costumes comuns, onde os que usufruem dela a aceitam, enquanto os estranhos – por definição – podem oferecer resistência, estranheza ou até mesmo negá-la, uma vez que possuem características adquiridas ao longo de um grande período sob o jugo de outra “cultura”.
Aliás, o uso da palavra “paraíso” está vinculada ao aspecto visual e ao arranjo do lugar, mas há pontos controversos como o uso indiscriminado de drogas para alcançar o “relaxamento” e a “paz”. O povoado também é repleto de pinturas que mostram cenas rituais estranhas onde a nudez, o sexo e até mesmo a violência aparecem com constância.
Seja como for, a primeira impressão é impactante, bucólica e linda. Haarga tem tudo para ser um lugar muito próximo daquilo que concebemos como perfeito, isso se você não se importar em viver longe da tecnologia…
A simplicidade a serviço do bom cinema.
O diretor e roteirista Ari Aster se vale de tomadas interessantes para evidenciar que o espectador está entrando em outro mundo. Um destes artifícios é o giro de câmera onde o carro dos estudantes está de cabeça para baixo e, ao se aproximar do vilarejo, volta à posição “normal”. Isso simboliza a entrada em um universo completamente diferente, ainda que nada possa preparar o espectador para o quão diferente possa ser.
Outro toque de mestre foi o de incluir pessoas suecas para que a fluência no idioma desse mais credibilidade à obra. Isabelle Grill (Maja), Vilhelm Blomgren (Pelle), Julia Ragnarsson (Inga), Anna Åström (Karin), Liv Mjönes (Ulla), Gunnel Fred (Siv), Henrik Norlén (Ulf), Anki Larsson (Irma), Lars Väringer (Steve) são algumas das ótimas aquisições suecas ao elenco, cujas interpretações dão o tom de grandiosidade à obra.
O uso majoritário de cenas em plena luz do dia (uma vez que a localidade tem pouquíssimas horas de escuridão) é outra ideia grandiosa, principalmente se levarmos em conta que filmes de suspense e terror sempre se valem dos tons escuros para criar o clima de medo necessário. O medo, o suspense, o terror estão embutidos em cada novo segundo do filme, mas não há motivos para se usar a escuridão como ferramenta ou muleta para essas sensações.
O ciclo da vida.
Uma das mais impactantes passagens de Midsommar retrata o ritual de aceitação do fim da vida, uma ode ao ciclo da vida. A cena causa incômodo no espectador (vi isso em várias faces) e é de uma crueza pouco mostrada no cinema. Entretanto, isso é parte de uma cultura que prefere privilegiar uma vida inteira de alegrias, companheirismo e respeito a um fim onde o abandono e a doença são constantes.
Claro que o tema é polêmico, controverso e, para alguns, herege, mas faz parte de um bom filme a inclusão de algo que leve o espectador à reflexão. Midssomar, esclareço, está repleto de passagens que levarão o público a parar e pensar, inclusive após o fim do longa-metragem.
Muito mais que aparências…
Um dos homens mais importantes de Haarga não é belo. Rubi Radr (Levente Puczkó-Smith) é um dos guardiões das revelações divinas, um homem deformado (bem parecido com o corcunda de 300) e que detém um poder muito maior do que sua aparência frágil e monstruosa pode indicar.
Do mesmo modo, os homens, mulheres e crianças do vilarejo mostram – ao longo do filme – uma devoção quase fanática às tradições e divindades, uma crença tão forte que os mantêm isolados do resto do mundo, ainda que eles dependam, esporadicamente, de estranhos para cumprir com alguns dos mandos divinos.
O que fica claro na obra é: não se baseie nas aparências. Aliás, há apenas um negro em todo o filme, um estudante de antropologia que leva sua paixão ao extremo, mesmo ciente das sequelas de seus atos… Os demais estrangeiros, some-se a eles a provável descendente de indianos Connie (Ellora Torchia) e Simon (Archie Madekwe), são muito parecidos etnicamente com o povo de Haarga, porém não possuem a fé e o tradicionalismo necessários para um convívio pleno no povoado.
O Homem de Palha.
É bom esclarecer que Midsommar é diretamente inspirado no clássico de 1973, O Homem de Palha (The Wicker Man). O filme conta com um bom elenco e tem como destaque a participação de Christopher Lee (Saruman em O Senhor dos Anéis). O longa é considerado o pai dos filmes cuja temática incluem o paganismo e rituais.
Para não fornecer spoillers, basta dizer que o final da trama é quase idêntico nos dois filmes. Também deixo claro que é pertinente assistir ao longa de 1973, principalmente por sua importância histórica.
Ligações entre os aldeões.
Na verdade, isso é perceptível em todo o filme, mas ganha ainda mais força com a proximidade do fim. Os aldeões são intrinsecamente ligados entre si. Eles se protegem e dão suportem uns aos outros, uma verdadeira comunidade ligada por laços afetivos, religiosos e pela convivência pura e simples. Essa ligação também se estabelece ao longo da trama com um dos integrantes do grupo de estrangeiros que começa a ver o povoado como um local onde a aceitação e o respeito, mas sobretudo o desprezo pelo passado, são possíveis.
Esse novo laço será fundamental para o fim do longa-metragem e seguirá os moldes vistos no filme O Homem de Palha.
Nota Final.
Esse é um filme de extremos. Muitos amarão, muitos o odiarão. Essa polarização acontecerá em função da aceitação ou não da cultura mostrada no longa. É importante ressaltar que não estamos falando de compreensão, apenas aceitação, pois há culturas que são absolutamente diferentes da nossa e que podem parecer, a princípio, bárbaras ou extremistas. O que está exposto em Midsommar é: as diferenças podem chocar, o que não implica em dizer que são ruins.
Cada um dos habitantes de Haarga vive sob os costumes e leis do vilarejo, acatam as tradições e estão dispostos a tudo para manter essa secular modo de vida. Os estrangeiros não apenas estranham isso; em algumas ocasiões eles violam as leis e ofendem a fé e a tradição do povo, atitudes que não passarão incólumes.
O roteiro é interessantíssimo, algumas cenas são impactantes e desconfortáveis (e isso é bom!), as atuações são maravilhosas e nos transportam para Haarga a ponto de sofrermos com os estrangeiros… e compreendermos os aldeões. A direção de Ari Aster é precisa, crua e inteligente. Ainda que tenha bebido na fonte de O Homem de Palha, certamente o diretor nos brindou com uma visão única que critica – indiretamente – as políticas de invasão aos territórios estrangeiros de alguns países, além de evidenciar o quanto somos pequenos quando achamos que somos os “civilizados” por termos tecnologia e conforto.
O mundo é muito mais do que as mentiras e falsidades estampadas diariamente em redes sociais. Haarga é uma alegoria de um mundo livre dos grilhões impostos pela internet e a tecnologia, ferramentas que seriam extremamente úteis quando bem aplicadas, porém apenas servem para distanciar mais. A aldeia é um paraíso onde todos sabem seus direitos e deveres, onde o respeito é mútuo e, mais ainda, um lugar no qual as tradições podem conviver com o novo, desde que respeitadas.
Alguns estabelecerão e encontrarão conotações religiosas em certas cenas, outra inserção inteligentíssima por parte de Ari Aster. Há essas e outras inserções onde os signos são usados com maestria e, honestamente, a visão e o conhecimento de cada espectador serão primordiais para a compreensão da obra ou até mesmo para que seja possível enxergar esses “signos”, os simbolismos utilizados.
Com uma grande dose de suspense, um terror moderado e cenas inesquecíveis, Midsommar é o filme a ser visto, pensado e guardado na memória por um longo tempo.