Crítica: Matrix Ressurrections

No ano de 1999 a humanidade, com as portas para o ano 2000, só tinha um grande medo. O tal bug do milênio que iria literalmente confundir as máquinas e praticamente todos os sistemas do globo iriam entrar em pane. Logicamente que a preocupação virou um folclore, mas o que realmente bugou o cérebro e a visão do fã de cinema daquele rico ano de produções foi um filme extremamente enigmático e inovador. As irmãs Lilly e Lana Wachowski (na época eram irmãos) criaram um roteiro e dirigiram um filme que revolucionou o cinema. Com efeitos incríveis para época com slow motion e balas sendo desviadas com reboladas, lutas sensacionais desafiando a gravidade, multiplicações de vilões, um ambiente soturno e esverdeado e uma trama que misturava ciência, religião, misticismo, pseudofilosofia e uma história de dominação de máquinas com mundos paralelos, realidade que era uma ilusão e roubo de energia vital humana, Matrix virou um clássico instantâneo. Keanu Reeves ditou até moda com seu capote preto e os óculos escuros. Logo vieram duas continuações, a segunda razoável e a terceira extremamente chata. Quando tudo parecia perdido (leia-se a franquia terminada, afinal sem Neo e Trinity não teria razão de ter novo Matrix), Lana Wachowski (sem a irmã dessa vez) nos apresenta o quarto filme da franquia, Matrix Ressurrections (idem, 2021) que estreia hoje nos cinemas.

Sr. Anderson está de volta a Matrix, agora é um respeitado desenvolvedor de games que ficou famoso por fazer o jogo Matrix que é mais ou menos uma síntese de sua louca história. O jogo tem diversas franquias, Anderson está rico, mas sofre diariamente com crises em que ele se pergunta de onde tirou essas histórias e o que é verdade ou não na sua vida. Tem ajuda de um psiquiatra que tenta amenizar suas dores e acaba se apaixonado por Tiffany, quase um déjà vu de sua paixão Trinity. Mas é claro que mais uma vez das profundezas da vida real um grupo tenta de tudo para mostrar a verdade, que ele é o lendário Neo e que tudo que vive é uma ilusão programada. Mais uma vez nosso herói toma a famigerada pílula vermelha e volta a realidade, agora uma realidade melhorada sem tantos conflitos e tenta descobrir por que ainda está vivo e como resgatar Trinity da Matrix, além de enfrentar novos agentes que querem eliminar os rebeldes.

Lana e sua irmã fizeram história no fim de século passado com o Matrix original. Mesmo achando graça hoje em dia quando vemos aqueles celulares antigos, monitores de pc enormes e saídas de mundos por cabines telefônicas, é inegável que o que elas fizeram juntamente com o departamento de efeitos especiais do filme para o futuro do gênero de ficção. Com a morte do casal principal, ficava difícil engolir uma continuação, mas Matrix 4 é uma grata surpresa porque nos remete ao filme de 1999 e esquece um pouco os exageros e chatices de suas continuações. A própria brincadeira metalinguística onde Neo/Anderson lucra muito com seus jogos com o mesmo conteúdo dos filmes é uma sacada certeira.

Claro que atualizações, como ao invés de usar cabines telefônicas usar espelhos, foram necessárias para incrementar a história para 2021. Um dos acertos do roteiro é talvez não se levar a sério demais, o filme é muito divertido, tem grandes piadas, uma fotografia menos soturna e melancólica, utiliza mais como cenário a nova Matrix, dando ênfase a grandes cenas de ação, perseguições de tudo que é tipo, muito tiro e pancadaria, deixando as naves e a pseudofilosofia um pouco de lado. Mas apesar dessa ode ao icônico filme de 1999, Matrix Ressurrections, com todos os recursos dos anos 2020, não surpreende muito com o que foi sua marca registrada no fim dos anos 1990: os efeitos especiais. Vemos grandes cenas obviamente, mas nada que qualquer blockbuster não faça todo mês nos cinemas, não chega a ser uma decepção, mas eu esperava algo mais surpreendente com tanta CGI disponível no mercado. Outro ponto negativo do filme é o ritmo lento em certas passagens e mesmo assim nem usado para grandes diálogos ou teorias alucinantes, essa pasmaceira em alguns momentos pode fazer o novo espectador dos anos 2020 sentir um pouco de tédio ou até mesmo sono.

Keanu Reeves veste novamente a capa de Neo e não decepciona, mesmo 20 anos mais velho continua com sua pinta de galã em excelente forma e quando reassume mesmo o papel do escolhido se solta de uma maneira única, nitidamente se divertindo com o filme. Carrie Anne-Moss sim está brilhante no papel de Tiffany/Trinity, mais solta e independente que nos outros filmes, tem mais destaque na trama e forma com Keanu um casal com uma liga perfeita. Matrix 4, no meio de realidades paralelas, explosões e tiroteios é no fundo uma incrível história de amor, Neo e Trinity mostram que mesmo em mundos distantes, pílulas azuis ou vermelhas, tempos relativos e até a morte, nada pode deter o amor eterno do casal que só se fortalece em cada filme. No filme só quem não volta mesmo é Laurence Fishburne, que por motivos contratuais não participa desta continuação da franquia, sendo substituído por Yahya Abdul- Mateen II como Morpheus, papel e atuação apenas discreta na nova trama.

Matrix Ressurrections, apesar de não apresentar nenhuma novidade e não ter nem perto do impacto do primeiro filme, tem o mérito sim de ressuscitar a franquia com estilo, buscando as fontes no que funcionou do filme original, dando uma roupagem mais anos 2020 à série. E com um roteiro inteligente, extremamente divertido (principalmente a primeira metade do filme) e mesmo usando e abusando dos clichês verborrágicos filosóficos de sempre, está acima de muitas produções atuais, com Lana mostrando seu vigor mesmo sem sua irmã do lado. Matrix 4 é uma nostálgica homenagem ao melhor que a franquia produziu, capricha, mas não chega a nos deixar de queixo caído nas cenas intensas de ação, tem um visual deslumbrante, mas acima de tudo é uma belíssima trama de amor, transformando Neo e Trinity finalmente em um dos grandes casais do cinema, além de abrir um leque para uma nova franquia, já que com a saga de volta e os dólares entrando, certamente teremos mais Matrix nos próximos anos.

Mais do NoSet