Martinho da Vila – Araújo Vianna

Costuma-se dizer que a Santíssima Trindade dos primórdios do samba era Donga, João da Baiana e Pixinguinha. Os três, com seu maxixe e choro, deram as bases para o estilo virar a carta de visitas da música do Brasil. Veio então, a turma da Estácio, Mangueira, o Noel da Vila, mas quando o samba estourou, retornando o status de música com a cara do país e mercadologicamente explodiu, uma nova e não menos Santíssima Trindade surgiu no gênero que dominou os anos 1970, a década de ouro do samba. Paulinho da Viola, João Nogueira e Martinho da Vila eram a trinca de ouro do gênero, com canções antológicas em discos históricos. João já virou saudades, Paulinho segue firme e forte e Martinho, no alto dos seus 87 anos, com seu jeito maroto e contagiante, ainda brilha nos palcos. E foi no palco do Araújo Vianna que tive o privilégio de assistir seu espetáculo, sábado passado, onde Porto Alegre cantou e cantou até cansar com o mestre.



Em noite agradável, quase 3 mil pessoas ocuparam os assentos do Auditório, à espera de Martinho José Ferreira, filho ilustre de Duas Barras. Com aquele sorriso marcante e andar sereno, o artista, sem muito atraso, estava no palco, com um pandeiro entoando partidos altos de sua carreira como Quem é do Mar Não Enjoa, Malandrinha, entre outros. Tudo à capela, tendo o tintilar do instrumento marcando o tempo. Com a compacta banda já a postos, ele abre os trabalhos com Tom Maior, de seu disco de 1969, que o fez um cantor de renome nacional. Depois revisita a lindíssima e bucólica À Volta da Fogueira, de 1983, mostrando a força de um repertório com mais de 60 anos de carreira.

Martinho feliz é redundância. Ele jamais fecha a cara, canta com alegria e passa essa serenidade para o seu público. Mesmo quase nonagenário, segue com muito pique, passando uma mensagem com ótimos sambas, como Onde o Brasil Aprendeu a Liberdade, homenagem à Guerra dos Guararapes, presente no seu clássico de 1972, Batuque da Cozinha.
Segue com o momento de religiosidade do show, com Iemanjá Desperta (1977), sua homenagem à rainha do mar e emenda Oração Alegre, composição dele com Carlinhos Brown, em que prega a união entre os credos através da busca da paz religiosa.

Falando em Santíssima Trindade, Martinho viaja para os primórdios do samba com Batuque na Cozinha, de João da Baiana, com direito a emendar o samba Pelo Telefone, de Donga, que se não foi o primeiro samba registrado na história, serve como marco zero na vasta história do ritmo. Martinho ainda brinca que em Porto Alegre tem uma roleta para se jogar. Roleta não se tem ainda, mas as bets mostram que apostas já estão no sangue do brasileiro há décadas. E claro, no final faz mais uma reverência a Pixinguinha, Donga e João da Baiana, os caras que começaram com tudo.


Martinho então apresenta sua incrível banda. Na harmonia o incrível cavaquinista Alan Monteiro, no violão Gabriel Aquino e João Rafael no baixo, fazendo muitas vezes marcação de surdo, herança de Luizão Maia, que nos anos 1970 criou o alicerce do contrabaixo no samba moderno. Na percussão os rodados e premiados Gabriel Policarpo e Bernardo Aguiar, esse um dos maiores pandeiristas do Brasil. Como vocal de apoio sua filha Analimar Ventapane.
Martinho sai de cena e deixa Gabriel e Bernardo brilharem num solo de repique e pandeiro de arrepiar, em que os dois esbanjam técnica e talento. Na volta, Martinho chama sua filha mais nova, Alegria. Como ele mesmo fala, sou o pai da Alegria. A menina, pra deixar o pai dar aquela respirada, canta três clássicos do samba e não faz feio, um Pra Mãe Tereza, que o cantor fez pra sua mãe, que Alegria adapta para a Vó Tereza, depois canta Alguém me Avisou, de Dona Ivone Lara, e um Trem das Onze, do Adoniran Barbosa. Digamos que a menina não faz feio, mas é aquele momento quase descartável do show, nepotismo forçado para o veterando dar aquela descansada.

Mas voltando ao show do Martinho, mais descansado, o poeta da Vila Isabel canta Meu Laiá-Raiá, do seu álbum de 1970. Sentado em uma confortável poltrona, Martinho puxa aqueles versos antológicos: “Eu quero me esconder debaixo dessa sua saia pra fugir do mundo” e o povo vai junto, se levantando dos assentos para cantarolar o clássico Disritmia. Martinho fecha a música de pé e já puxa outro grande sucesso, Ex-Amor, dessa vez ninguém mais sentou e se entregou ao som contagiante do cantor. Passados os clássicos românticos, evoca sua querida escola de samba, Unidos de Vila Isabel, com seu samba-enredo (com parceria de Rodolpho e Graúna) Sonho de um Sonho, do desfile de 1980, com direito à bandeira de Vila Isabel no fundo.



O telão de fundo era um show à parte, ilustrado com imagens do Martinho e capas de discos históricos como os de 1969, 1974 e 1975, os dois últimos do mestre Elifas Andreatto. E com a capa do disco de 1969 no fundo, Martinho explica que a letra de Pequeno Burguês é inspiração de um colega no tempo de farda, e que ele passou no vestibular apenas com 75, e ainda frisando que não tem idade certa para aprender. Senha dada, o Araújo cantou junto: “Felicidade, passei no vestibular, mas a faculdade era particular”. Quase sem dar tempo de recuperar o fôlego, canta seu sucesso Canta, Canta Minha gente e com aquele otimismo e alegria característicos, ao ouvirmos Martinho sempre nos dá certeza que a vida vai melhorar, sempre vai melhorar!


Do mesmo disco de 1974, Martinho evoca os orixás com Festa de Umbanda, e com uma bandeira do Brasil misturada com Angola, canta o que pra mim é um dos mais lindos sambas-enredos de todos os tempos, Kizomba Festa da Raça, obra-prima de Jonas, Rodolpho e Luiz Carlos da Vila, responsável pelo primeiro título da Vila Isabel. Momento de arrepiar. Martinho segue explicando o porquê das pessoas acharem ele calminho e devagar e que é assim que quer seguir sua vida até quando sair de cena.

Dita essa introdução, canta Devagar, devagarinho, com direito à dança com a filha Analimar no palco, esbanjando vitalidade. Surpreende o público e a própria banda, que teve que ir atrás das cifras às pressas, ao cantar o samba-enredo Glórias Gaúchas, gravado no seu disco de 1975 e samba-enredo da Vila de 1970, com uma linda bandeira do Rio Grande do Sul no fundo. Saindo à francesa, o público sabe que faltam canções, e Martinho logo retorna, senta, respira e chama no gogó Mulheres, o sucesso que fez as novas gerações conheceram o artista. Não preciso dizer que não tinha mais ninguém sentado e todo mundo cantarolava junto a sua homenagem ao mulherio de sua vida. Para acabar, chama Madalena do Jucu, fazendo um carnaval no Araújo Vianna, e dando um gostoso sorriso, manda um adeus ou até breve à gauchada!

Ouvir Martinho acalma e aquece a alma. Ele tem o dom, com seu jeito sereno, de só provocar sentimentos bons, e por mais de uma hora e meia, com sua banda incrível e suas duas filhas, nos deu uma aula de samba, poesia, negritude, respeito religioso, amor e história. Características desse grande cantor, compositor, pesquisador e poeta, que chegou com seu jeito manso e conquistou o Brasil. E mesmo com 87 anos de muita experiência, ainda tem fôlego para passar sua mensagem direta em nome do samba e da história da música brasileira com muito axé. Viva o samba brasileiro, a Vila Isabel e o nosso Martinho da Vila, patrimônio nacional!

