Linguagem familiar – “No Ritmo do Coração”

Ser o membro diferente da família não é algo absurdo, sempre tem um que se destaca pela diferença. Mas e se essa diferença é o que conecta a família a outra “versão” do mundo?

Ruby Rossi, em “No Ritmo do Coração”, é esse elo social entre sua família e a sociedade da pequena cidade em que vive, por um detalhe importante: ela é a única ouvinte dentro de uma família de surdos.

O longa foi baseado em outro longa, o francês “A Família Belier”, que fora assinada por Victoria Bedos, Stanislau Carré de Malberg, Éric Lartigau e Thomas Bidegain. A versão estadunidense de 2021 tem direção e roteiro adaptado por Sian Heder, com produção da AppleTv+, mas acaba de chegar no catálogo nacional do Amazon Prime Video.

O fato de ser a única ouvinte da família dá a Ruby responsabilidades que vão além daquelas “tradicionais” de uma adolescente de 17 anos. Ela tem que ir pescar logo cedo com o pai e o irmão, antes de ir para a escola, por exemplo.

Ela é muito consciente dessas responsabilidades, às vezes até demais, sentindo a necessidade de proteger sua família de todas as falas preconceituosas que ela enfrenta. Mesmo sendo a filha mais nova, ela abraça a posição de protetora e intérprete daqueles que ela mais ama no mundo.

Em meio a tudo isso, ela encontra um talento escondido, a música. Ela sempre amou ouvir música e sempre está cantarolando, mas com a família, então só ela mesma se ouve e nunca pensou que isso poderia ser um talento, até que decide entrar no coral da escola.

O coral é liderado pelo Professor Villalobos, que é, ao mesmo tempo, exigente, egocêntrico e extremamente dedicado ao seu trabalho, sabendo reconhecer e extrair o talento de seus alunos. Ele reconhece que Ruby tem capacidade de estudar em uma das principais faculdades de artes do país, a Berklee, que fica apenas a poucas horas da cidade onde vivem, e se oferece para a preparar para a audição.

Isso abre a mente de Ruby para outras possibilidades de futuro para ela, algo que não esteja relacionado à família dela, como sempre acontece, mas ela não recebe o apoio inicial dos pais e recebe uma reação estranha do irmão.

Os pais dependem muito dela, especialmente para o trabalho, porque é necessário que ela seja a intérprete para negociações, por exemplo. Já o irmão, que é mais que ela, está cansado de ser tratado como uma criança, mesmo sabendo que pode se virar, o que o faz sentir raiva da irmã, mas não retira o fato de ele saber que ela tem talento e pode se dar bem na faculdade.

O dilema inicial de Ruby parece repousar na relação com a família, ela se sente cansada de ser esse porto seguro, de ser a única salvação deles, de não ter algo para ela. Aos poucos se ver que isso vai além, misturado a essa sensação de cansaço está com o medo em dois aspectos, deixar a família desamparada e de ficar sozinha, afinal ela nunca esteve sozinha.

É um filme com cara de romance adolescente, com direito até a interesse romântico quase inacessível (ele é popular, ela é underdog), que é um dos pequenos motivos para Ruby entrar no coral, mas que se abre para discussões muito mais profundas.

A frase de divulgação do filme é algo como “toda família tem sua linguagem”, por isso chamei essa resenha de “Linguagem familiar”, e esse é o real tema do filme. Os Rossi’s são uma família como qualquer outra, precisam se encontrar e se perderem na comunicação familiar, a diferença é que usam a Língua de Sinais Americana.

Lógico que existem situações específicas, receios e desafios que só eles saberiam dizer, mas no fim Ruby e Leo (o irmão, do jeito dele) estavam tentando dizer algo para eles e eles ainda não tinham entendido.

Tem uma curiosidade sobre o título também. No original o filme se chama “CODA”, que é a abreviação de “Child Of Deaf Adults”, traduzindo fica algo como “Filhas de Pais Surdos”, mas esse também é um termo da música, é, segundo o dicionário Oxford, a parte conclusiva de uma sinfonia. O título original é uma perfeita representação dos dois principais aspectos da vida de Ruby.

Como comentei lá no começo, esse filme é a versão estadunidense do filme “A Família Bélier”, com suas devidas adaptações. Um exemplo é o negócio familiar, no francês eles são donos de uma fazenda e no estadunidense são pescadores que depende de uma cooperativa má administrada. Outro detalhe é que o irmão da protagonista no francês é mais novo, já no estadunidense é mais velho, isso vai fazer diferença em alguns momentos da trama.

Mas a diferença fora da trama é que mais se destaca. Em “A Família Bélier” somente uma atriz do elenco é realmente surda, os demais personagens surdos foram interpretados por atores ouvintes, o que levantou a discussão sobre capacitismo. A adaptação corrige isso, os pais e o irmão de Ruby são interpretados por atores que são realmente surdos.

Frank Rossi, pai de Ruby, é vivido por Troy Kotsur, conhecido por filmes como “Número 23” e produções da Broadway, entre as quais foi protagonista e recebeu premiação por ela. Ele foi o alívio cômico dentro da família, com um jeito rude de falar, mas com um grande amor pelos prazeres da vida.

Tem várias cenas de Frank memoráveis, mas uma que chama atenção é a que ele vai pegar Ruby na escola com o som do carro nas alturas, matando a menina de vergonha. Pelo o que entendi, ele consegue sentir a vibração de alguns instrumentos e, por isso, ele gosta de algumas músicas de rap (quanto maior o volume, mais dá para sentir a vibração).

Conclusão totalmente baseada em achismo, se tu estiver errada podem me corrigir.

Leo Rossi, o irmão de Ruby, é interpretado por Daniel Durant, conhecido pela série “Trocadas na Maternidade” (Switched at Birth), pela participação em “You” e por também ter estado em produções da Broadway.

Jackie Rossi, a mãe de Ruby, é vivida pela brilhante Marlee Matlin, famosa por ser a única atriz surda ganhadora do Oscar de Melhor Atriz, pelo filme “Filhos do Silêncio”, de 1986. Mas de lá para cá Marlee esteve presente em muitas séries e filmes marcantes, como “Picket Fences”, “Trocadas na Maternidade” (Switched at Birth – ao lado de Daniel Durant), “Quantico”, “The L World”, “My Name is Earl”, além das participações em “Glee” e “CSI: NY” (ao lado de Troy Kotsur), dentre tantas outras.

É sempre um prazer ver Marlee Matlin atuando, seja em comédia ou em drama. Lembro bem de algumas cenas de “Switched at Birth” e da participação em “CSI: NY”, em dois momentos muito dramáticos, peças memoráveis da atuação dela.

Ruby, esse elo tão importante, é vivida por Emilia Jones, conhecida, principalmente, pela série “Locke & Key”. Toda as emoções que ela foi capaz de transmitir, passando de adolescente confusa e talentosa ao pilar social da família, é de arrepiar, impossível não se emocionar com ela. Além disso, passou meses fazendo aula de canto, de Língua de Sinais e para operar o barco de pesca, o que a fez ser a perfeita Ruby.

Professor Villalobos, o excêntrico que abriu a mente de Ruby, é interpretado por Eugenio Derbez, conhecido por filmes como “Dora Aventureira” e “O Quebra-Nozes e os Quatro Reinos”.

O interesse romântico de Ruby, Miles, é vivido pelo irlandês Ferdia Walsh-Peelo, famoso pelo filme independente (mas fofíssimo) “Sing Street”. A presença de Miles pode até parecer irrelevante em uma primeira análise, mas ele tinha a visão externa de Ruby, conhecia de vista, e a admirava por algumas coisas que ela não notava, receber esse comentário dele foi um passo a mais para a segurança de Ruby com suas decisões.

Gertie, a melhor amiga de Ruby, é vivida por Amy Forsyth, conhecida por “Querido Menino”. Ela é outra personagem que parece irrelevante, até fútil em algum momento, mas é ela quem lembra Ruby do fato de ser jovem, além de ter seu impacto dentro da família Rossi … Vou deixar o mistério.

Até mais!

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