(© walter craveiro)

Karl Ove Knausgård escreve para as almas inquietas, solitárias e, por que não, esperançosas

É assustador o quanto um autor pode traduzir sentimentos que o leitor já teve ou ainda tem. Karl Ove Knausgård escreve para as almas inquietas, solitárias e, por que não, esperançosas. Muitos têm ou já tiveram um relacionamento conturbado com o pai. Há essa relação de temor, não de amor. É o que muitos enfrentam quando criança e que carregam quando adultos. As cicatrizes de uma infância atormentada pela presença do pai causa um afastamento em que, se não fosse esse laço de sangue, não haveria nada mais que os unissem. Com uma linguagem clara e direta, o autor vai narrando a história da sua vida e, por mais simples que seja as cenas, os diálogos, as tensões, a forma como ele narra todos esses acontecimentos deixa a sensação de que estamos diante de algo belo, algo que é maior do que pretende ser. Belo porque nos vemos em uma, ou outra situação, pois já fomos crianças, adolescentes e, agora, adultos. A descoberta do amor, o viver em um mundo que não é tão seguro como imaginávamos, o enfrentamento e a convivência com a solidão. O Karl Ove criança acaba sendo a representação do eu quando criança, embora não literalmente. O que muda é apenas a época, a localização geográfica – pois ele é norueguês – e a cultura. Mas os dilemas humanos são iguais, em certo sentido, em qualquer lugar desse universo que deve estar cansado de ver aquilo que já não é mais novo debaixo do sol. Dilemas iguais, mas diferentes na intensidade. Alguns enfrentam estes problemas com maior profundidade, outros apenas avista-os e logo passa.

A morte tem esse mistério que a envolve. Na verdade, a morte é o nosso problema desde sempre. Ela impõe esse medo nos homens, e estes, como para se proteger, faz de tudo para que ela não apareça em seu dia a dia. Damos expressões menos agressivas para alguém que morreu. Faleceu, veio a óbito, descansou, partiu, fechou os olhos. Expressões que pretendem esconder o doloroso fato de que a vida é frágil e de que a morte pode acabar com todos os nossos planos em um abrir e fechar de olhos. Karl Ove chega a questionar o porquê os cadáveres ficam sempre nos lugares mais baixos e mais escondidos de um hospital, enquanto os doentes ficam em lugares visíveis e altos. Por que essa necessidade de esconder os corpos a todo o custo? O medo de ver o corpo de alguém que já morreu toma conta do nosso ser. Mas por que temos medo de algo que não é mais aquele que amamos? O pai de Karl, afinal, não era mais aquele corpo em cima de uma mesa na funerária. Mas associamos, porque é inevitável não associar, a pessoa que amamos àquele corpo sem vida e que irá se decompor. Um autor já disse que não somos corpos, mas almas. As almas possuem os corpos, e tão logo chega a hora delas partirem, abandonam este receptáculo frágil e mortal. A alma é imortal, o corpo não.

Há toda uma reflexão sobre a nossa vida e o que estamos fazendo para vivê-la de verdade. Nossos rancores e mágoas devem perdurar para sempre? A última vez em que ele tinha visto o pai fora há um ano antes de sua morte. Começa a se perguntar o porquê não o tinha visto mais. É estranho um filho morar tanto tempo com o seu pai e não saber quem realmente ele é. Ou conviver por tanto tempo debaixo do mesmo teto e não criar um laço afetivo que os aproximem. Afinal, o que ele teria feito para que isso acontecesse? A morte é dolorosa e traz esses questionamentos muito tarde. Pois a morte do pai é algo concreto e ele nada pode fazer para mudar essa tão incômoda realidade. Seu pai morreu. É algo que o deixa sensível demais. Seu pai morreu. O que faz o leitor refletir sobre toda esta situação. E quando o nosso pai morrer? Algo que relutei a pensar durante toda a leitura, mas foi inevitável. Diante desta perspectiva, o que devemos fazer?

Além da reflexão sobre a morte, que norteia todo o romance autobiográfico, há pensamentos sobre o ofício de escritor. Escrever não é algo mágico, é preciso sofrer bastante para poder tentar, tentar!, escrever algo que signifique. “A morte do pai” é uma leitura deliciosa, pois nela há essa virtude da contemplação, e também é inquietante.


★★★★★

Uma noite de ano-novo e rebeldia, regada a cervejas vedadas aos menores, um amasso nauseante na primeira namorada, um show fracassado com a banda de punk no shopping center – em A morte do pai, primeiro romance da série autobiográfica Minha Luta, Karl Ove Knausgård se concentra em narrar os anos de sua juventude.
Ao embarcar numa investigação proustiana e incansável do próprio passado, o narrador busca reconstruir, sobretudo, a trajetória do pai, figura distante e insondável que entra em declínio e leva o núcleo familiar à ruína. Honesto e sensível, Knausgård investiga também o próprio presente: aos 39 anos, pai de três filhos, ele deve se ajustar à rotina em família, trocar fraldas e apartar brigas, tudo isso enquanto tenta escrever seu novo romance, numa luta diária.
Com A morte do pai, Knausgård inaugura um projeto monumental e ambicioso, que logo se tornou best-seller na Noruega e fenômeno literário internacional. São seis volumes híbridos entre a ficção e a memória, em que o autor explora, com pleno domínio da atividade narrativa, as possibilidades da ficção contemporânea.

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