Jorge Aragão volta a Porto Alegre, no Auditório Araújo Vianna
Poucos artistas podem ser chamados de unanimidade em um estilo e que sabem transitar tão bem entre tradição e modernidade, com uma pegada popular. Um deles é Jorge Aragão. O sambista carioca, que vem de formação nos bailes da vida, foi um dos fundadores do Fundo de Quintal, inaugurando uma nova era pro samba e pagode, e teve um ressurgimento popular com discos e DVDs marcantes no início dos anos 2000. Composições rebuscadas, um samba diferente, com uma poesia sensível, são características de Aragão, que teve obras gravadas por artistas de diversos estilos. E Porto Alegre, em vésperas de seu aniversário, teve o privilégio de ser presenteada com seu show. O local escolhido, é claro, o Araújo Vianna, e matando a saudades, depois de uma ausência de anos na capital, e abrindo o outono, nós do NoSet conferimos o gigante Jorge Aragão no sábado passado.
Competindo com o Baile da Cidade, uma festa ao ar livre no Parque da Redenção, comemorando os 252 anos de Porto Alegre, já na entrada do show, na esplanada do Araújo, um grupo fazia uma roda de samba, um verdadeiro aquece para a chegada do mestre, onde uma pequena multidão cantava alguns sucessos, regada a samba e cerveja. Dentro do auditório, mais de 4 mil pessoas lotavam o Araújo, ávidas para saudar o mestre Jorge. Com um considerável atraso (praxe irritante por essas bandas), mais de 21h30min, a banda do cantor subiu ao palco, fazendo referências instrumentais a músicas como Do Seu Lado e Hino da Vitória, abrindo o caminho para a entrada de Aragão, que logo avisa: “Hoje é só samba velho”, ou seja, coisa boa estava por vir. De pé, com um surdo do lado, ele entoa uma das suas mais famosas canções Eu e Você Sempre. Não precisa nem dizer que, como diz a música, ao invés do barraco desabou, quase o Araújo veio abaixo, com o público de pé cantando junto. Sem dar tempo de respirar, emenda a lindíssima Lucidez, clássico das rodas de samba e vindo logo em seguida com outra maravilhosa canção, essa a cara das composições de Jorge, Novos Tempos.
Depois desse início catártico, o triângulo avisa que o samba com forró vem aí e com De Sampa a São Luiz fecha seu primeiro bloco. Jorge, visivelmente emocionado, agradeceu ao povo que o venera, e principalmente, é grato ao privilégio de estar vivo, feliz e fazendo o que ama, que é samba, para seu público. Com Identidade, de 1992, manda um recado aos racistas e ao preconceito, mas é com Coisa de Pele, um dos seus primeiros sucessos solo, que a casa delira, dança e canta junto, sob a bênção e a voz de trovão de Jorge Aragão. Diga-se de passagem, mais uma vez a equalização de um show de samba deixou a desejar e o timbre grave da voz de Aragão sobrava demais, ou outras horas rebolava, e os instrumentos muito mais baixos que a voz, também prejudicava a cadência dos sambas. Mas nada que fizesse o povo se preocupar tanto. Com Tendência, composição sua com Dona Ivone Lara, mais uma vez o coral e a animação tomaram conta do Araújo.
A próxima canção Jorge avisa que tem “apenas” 56 anos. Falava de Malandro, uma das suas primeiras composições, junto com seu fiel amigo Jotabe. Uma história real que os dois amigos passaram para poesia e estourou em 1976, com Elza Soares. E com seus lara laia clássicos (como suas músicas têm lara la ia), Jorge relembra o começo de tudo na lindíssima melodia, alertando aos boavidas a não ter o mesmo destino do Zeca da letra. Aqueles momentos para guardar para sempre.
Mas Jorge, no alto dos seus 75 anos, e 60 de carreira, pede licença para sentar e começa uma sessão nostalgia de sambas e pagodes românticos. Já É abre o bloco com a carta de amor em forma de coração. Nesse momento a plateia também dá uma pausa, senta um pouco e contempla o sambista. Segue com Amor Estou Sofrendo e de carta de amor em forma de coração vai pra bilhete de despedida em papel de pão, com a canção desse nome, um dos primeiros sucessos de sua carreira. Loucura de Paixão segue o baile, mas é com Feitio de Paixão, do álbum Raiz de Flor, de 1988, que a galera se anima de novo e começa a cantar, em mais uma daquelas canções líricas que só Aragão pode interpretar ao seu jeito. O show segue com as menos cotadas Sentinela e Abuso do Poder, mas é com Conselho, um dos maiores clássicos do samba/pagode de todos os tempos que faz mais uma vez a casa levantar de vez e cantar o refrão otimista.
O vovô Jorge Aragão (como ele mesmo se auto intitulava no show) segue pedindo respeito, e com merecimento, com a ótima Moleque Atrevido, e no caso do cantor, todo respeito é pouco, como diz a própria música, a um cara que chegou no nível que ele chegou. Cabelo Pixaim abre para um dos seus grandes sucessos, Não Sou Mais Disso, transformando o show numa animada roda de pagode do mais puro gabarito. Do Fundo do Nosso Quintal, canção que fez para o grupo que o projetou nacionalmente e fez as rodas de pagode virarem mania nacional é orquestrada por ele com os boa noite da música, em mais um momento ímpar do espetáculo.
Para o final do show, chama a bateria e tem início o carnaval no palco, contagiando a massa, começando com Carnaval Globeleza, jingle do carnaval da vênus platinada, que é composição dele e de Franco Lattari, só ele muda o refrão emocionado, dizendo “a gente vai se ver de novo”, enaltecendo o carinho do público gaúcho. E segue com dois arrasa quarteirões dele (com outros compositores), que revolucionaram o samba no fim dos anos 1970, na voz da madrinha Beth Carvalho. Coisinha do Pai e a apoteótica Vou Festejar, como sempre falo sobre elas, aquelas canções que independente de gostar ou não de samba, não tem como não se entregar ou aplaudir mesmo, fechando com pouco mais de uma hora e meia de show, uma aula de samba.
Digo que Jorge é uma unanimidade, é que no público se via um ecletismo, tanto de estilos, idade, condição social, mas todos guiados pelo amor à arte popular do Jorge Aragão, um setentão com aura de moleque, boné na cabeça e sorriso gostoso, que faz samba fácil, sem abandonar o conteúdo, a poesia, mas que jamais deixa de ser pop, e que com suas canções, faz todo mundo cantar, uma entidade que se prima pela simplicidade no estilo despojado, quase minimalista, apresenta samba de primeira que saiu dos fundos dos quintais da Zona Norte do Rio para o mundo.
Crédito das fotos: Vívian Carravetta