Grande show de Emicida, apresentando álbum Amarelo, em Porto Alegre
Alguns limites parecem não ser problema para Leandro Roque de Oliveira. Com uma carreira de uns 16 anos e uma vasta bagagem de rimas improvisadas, lápis e papel, o paulistano Emicida foi aos poucos, entrando de fininho, mostrando seu rap e talento em formas de poesia e conquistando cada vez mais fãs. Midiático, transita em diversos canais de comunicação, televisão, streaming, redes sociais e com seu disco Amarelo, de 2019, conseguiu levar o hip hop, o gueto e o povo para o Teatro Municipal de São Paulo, em um antológico show da turnê do álbum de mesmo nome. Mas veio a pandemia, a rima ficou abafada e a voz teve que se calar, mas não por muito tempo. Voltando à turnê interrompida pelo vírus, Emicida desembarcou na capital do Rio Grande do Sul, em duas noites apoteóticas e abarrotadas de gente. Os shows, claro, foram no Araújo Vianna, o disco voador sonoro pousado na Redenção. E o NoSet foi conferir de perto a idolatria do público e o gigantesco show do artista.
Fomos na segunda noite, Porto Alegre ainda absorvia a catártica noite anterior e o rapper, em suas redes, não conseguia mensurar o tamanho da emoção do primeiro show. E a segunda noite, num lindo domingo porto-alegrense, não deve ter ficado devendo em nada para a de sábado. Com um Araújo, que eu particularmente nunca tinha visto tão cheio e a massa, sedenta pela música do artista, não precisou esperar muito para às 20h15min a superbanda entrar no palco e, com um visual Adidas da cabeça aos pés, Emicida surgiu e enlouqueceu seu povo. Depois de uma introdução começou o show com A Ordem Natural das Coisas, singela canção do álbum Amarelo, fazendo o povo cantar junto, com direito à inserção de Chiclete com Banana, clássico do sambista Gordurinha e imortalizado na voz de Gilberto Gil. Seguindo a mesma toada, vai de Quem Tem um Amigo Tem Tudo, mostrando a união de rap com samba e mais uma vez inserindo um clássico na música, dessa vez A Amizade, do Fundo de Quintal. É Tudo pra Ontem, de 2020, parceria com Gilberto Gil, segue aquele crossover do rap, MPB, samba. Pequenas Alegrias da Vida, do disco de 2019, segue o baile e com a plateia cantando voluptuosamente cada frase da letra.
Fica clara a grande sacada e maturidade do rapper, que soube unir a tradição com modernidade, não fugindo das suas raízes de periferia com a força das rimas do rap, mas cada vez mais transitando pela MPB, o que fez transcender seu público, hoje Emicida é mais que um rapper, é um cantor de MPB altamente sofisticado. Produção de palco impecável, cenografia do Amarelo e uma banda altamente qualificada. Alguns mais tradicionalistas podem até torcer o nariz, mas hoje Emicida é um bambambã da MPB e seus dias de rapper underground ficaram no passado. Seu dom da retórica é incrível, ele conversa com seu público, comenta que o Araújo parece um disco voador, fala de seus primeiros shows no Bar Opinião, símbolo da cultura brasileira, tudo isso numa simpatia e simplicidade cativante. Cananéia, Iguape e Ilha Comprida e Baiana, essa o beija mão definitivo nos cânones da música popular brasileira, encantam pela riqueza da poesia e arranjos excelentes. Não tem como não falar da superbanda, Silvanny Sivuca mostra todo seu virtuosismo na percussão, Michele Cordeiro, uma das melhores guitarristas do Brasil, com suas linhas sutis e precisas, preenche cada música, além de Thiago Jamelão nos presentear com sua voz incrível. Rodrigo Digão, baixista, tecladista, cavaquinista, um faz tudo, também mostra seu talento, completando a banda, o famoso Dj Nyack e o batera Jhow Produz. Time da primeira. Madagascar, do seu disco de 2015, o primeiro a mostrar essa nova fase Emicida e sua experiência africana, segue o baile com um primoroso arranjo. Teve tempo até para um pedido de casamento, Emicida manda subir ao palco uma fã, que solicitou ao artista para no seu show pedir em casamento sua companheira, um momento emocionante de explosão de amor e representatividade do show. Alma Gêmea segue o set e aí ela traz Eu Gosto Dela, um dos seus primeiros sucessos, de 2010, para êxtase dos mais de 4.000 presentes. Paisagem, do disco homônimo do show, mantém o pique, mas a ótima Hoje Cedo, de 2013, relembra o velho estilo do cantor, com um petardo que atira pra tudo que é lado na sua autorreflexão e crítica. Amarelo, a canção título do álbum de 2019, que revisita o clássico Sujeito de Sorte, do disco Alucinação, de Belchior de 1976, faz a plateia cantar o inesquecível refrão do cearense “Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. Música de quase 50 anos que numa roupagem e enxerto poético de Emicida se torna cada vez mais atual, ainda mais em tempos pós-pandêmicos.
A parte do meio do show é reservada aos petardos do artista. Com uma junção de Pantera Negra, Zica e Bang, vemos o Araújo, literalmente, tremer com a porrada sonora da banda, com Emicida destilando o melhor do velho Emicida, mais contundente e menos sorridente, mas super eficiente. Aí vem mais tiro de tudo que é lado em Eminência Parda e Boa Esperança, exaltando a negritude e o poder da canção pra mexer com a ferida e não deixar o esquecimento mandar. Ismália, com uma interpretação fantástica de Thiago Jamelão, o poema inspirado em Alphonsus de Guimaraens, hipnotiza a plateia. Aliás, que grande participação do povo, um público feliz, sedento pelas canções do artista e extremamente animado e emocionado, poucas vezes vi um Araújo tão incrivelmente conectado com um artista. Muito vem do carisma dele que comanda a massa, brinca, conversa um bocado. Levanta e Anda, uma das mais lindas letras do compositor, um libelo de otimismo e superação, segue o baile. Principia, do álbum Amarelo, fecha o show com uma percussão com toque de terreiro e africanidade e refrão contagiante pra cantar junto.
Mas lógico que o show não ia acabar ali e ele convida no bis uma artista local, a rapper Cristal, mandando bem na sua canção Ashley Banks. Generosidade e respeito do artista consagrado, dando espaço pra quem está na luta. O que se vê depois é mais de meia hora de um verdadeiro baile do Emicida. Ele fala, canta, brinca, se emociona, às vezes banca o pastor, fala de Deus e a importância da música para acreditar nos sonhos e ser respeitado, canta Trem das Onze, Carinhoso, elogia Wilson das Neves e emenda seus sucessos Casa, Gueto, Chapa Quente, Libre, São Pixinguinha, tem tempo para ensaiar com a massa uma batida, onde improvisa e fala sobre coisas de Porto Alegre e termina o show com o sucesso Passarinhos, que gravou com Vanessa da Mata, e com direito a dizer que Mario Quintana é seu poeta preferido. Enfim, se eles passarão, quem passarinho foi o público, que num domingo à noite não arredou o pé e presenciou um dos maiores momentos de conectividade plateia e artista, com uma simbiose poucas vezes vista num show. Momentos sublimes para guardar para a vida.
Emicida mostrou um espetáculo de primeira, mostrando com maturidade e talento, por que é um dos artistas mais idolatrados da nova geração, conseguindo lotar duas noites no Araújo Vianna, com dois show que devem entrar pra história como um dos mais inesquecíveis e marcantes da nave sonora porto-alegrense. Com certeza, um dos mais vibrantes que presenciei, ficando aquela sensação que se tivéssemos um terceiro show, teríamos casa cheia novamente e a energia seria exatamente a mesma. E lembrando a afirmação do início do texto: tenho certeza que a grandeza do Emicida não tem limites.
Crédito das fotos: Vívian Carravetta