Fundo de Quintal apresenta seu show em Porto Alegre
Debaixo de uma Tamarineira na Rua Uranos, em Ramos, zona norte do Rio de Janeiro, em meados dos anos 1970, uma verdadeira seleção de sambistas, partideiros e artistas em geral, ajudaram com seus pagodes a revolucionar o samba. Com o incremento do banjo, do tantan, repique de mão e muita alegria, poesia e talento, de lá surgiu o Fundo de Quintal, talvez o maior grupo de samba desse país. Apadrinhados por Beth Carvalho e tendo em suas formações mestres como Almir Guineto, Neoci, Sombrinha, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Mário Sérgio, entre outros, e capitaneados por Bira Presidente, Ubirany e Sereno, hoje o grupo tem 47 anos de vida e continua na ativa. E Porto Alegre teve o privilégio de assistir essa história domingo passado, obviamente no palco do Araújo Vianna, em uma fria noite de quase inverno na capital.
Se o frio batia lá fora, o clima dentro do auditório era quente. Com um público ávido por assistir o grupo, que sempre foi bem acolhido pelos gaúchos, não tinha frio que pudesse afastar o encontro do lendário grupo de Ramos com a gauchada. Claro que o conjunto hoje é bem diferente dos tempos áureos, temos da formação original o ícone Bira Presidente , no alto dos seus 86 anos tapeando seu pandeiro, Ademir Batera há mais de 30 anos exibindo sorrisos e talento como um dos maiores bateristas de samba do Brasil, Marcio Alexandre e Júnior Itaguay no cavaco e banjo e dividindo os vocais, além de uma banda competente de sete músicos na retaguarda. Nota triste foi a ausência de Sereno, da formação original e seu indefectível tantan, que por motivos de saúde não pôde comparecer ao show.
Por volta das 21h a banda é anunciada com pompa por um apresentador e, ao chegar palco, Bira Presidente dá seu discurso de apresentação, prometendo uma noite de muito samba e alegria. Dando o pontapé inicial ao show, eles tocam a clássica O Show tem que Continuar, um dos maiores sucessos do grupo de 1988, abrindo com grande estilo e levantando uma das mais animadas plateias que vi no Araújo Vianna. Oitava Cor, do mesmo disco de 1988, segue num medley sem parar que termina com Fogo de Saudade, que fez muito sucesso na voz da madrinha Beth Carvalho. Um início arrebatador com três clássicos. Segue o baile com um outro grande sucesso do grupo, Parabéns pra Você, de 1985, canção que mudou a sonoridade da banda, mas que transformou o Fundo em sucesso nacional. Nós, da imprensa, ficamos na frente do palco nas primeiras canções e até ali estava um som excelente, mas ao sair da coxia e se misturar com a plateia, começamos a sentir o problema de som que o show apresentou. Com vocais estourados, praticamente ensurdecedores, poucas vezes vi um show tão mal equalizado, provavelmente culpa de uma passagem de som ruim, um técnico com pouca experiência e total desconhecimento dos atalhos sonoros do Araújo. Uma pena, um show tão repleto de hits, com um público animado, acabou prejudicado por um som que às vezes beirava o insuportável para os ouvidos.
Mas, como estou aqui pra falar de música, o script segue com Fada, belíssima canção de Mário Sérgio, ex-integrante do grupo, do disco de 1995, que também é prestigiado com a linda Amor dos Deuses. Lucidez, do mestre Jorge Aragão e uma das mais gravadas pelo Fundo de Quintal na história, segue o show, com uma poesia única e interpretação característica do grupo. O público a essa hora não sentava mais e mesmo com o som recheado de problemas se divertia como nunca, ainda mais quando a banda homenageia Sereno e canta o clássico A Batucada dos Nossos Tantãs, um grito de respeito à arte popular mais brasileria de todas e como o samba ainda luta pelo seu espaço devido.
A Amizade, um dos maiores sucessos do grupo, desde 1991 no repertório, faz todo mundo cantar junto e se emocionar. Sobre a banda, não tem como não tirar os olhos de Ademir “sorriso” Batera, com sua bateria na frente e dando seu show de ritmo e simpatia. Bira Presidente, nitidamente mais cansado que costume, mas mesmo assim firme no samba aguentando os 90 minutos de apresentação com alegria, vitalidade e profissionalismo de sempre. A ausência do tantan de Sereno é muito sentida, mas ele está se recuperando e em breve deve estar de volta. A dupla Itaguay e Márcio Alexandre apresenta um gás novo pra banda, mandando bem nas interpretações, dominando seus instrumentos, brincando com a plateia, se divertindo, mas como já dito antes, prejudicados pela péssima equalização dos seus microfones. A banda de apoio é uma excelência incrível, sete talentosos músicos fazendo a cama para o samba do Fundo.
Só Felicidade é a próxima do set, antecedendo uma das mais lindas músicas do grupo, Doce Refúgio, que com a poesia do mestre Luis Carlos da Vila, resumiu bem a essência das Tamarineiras onde florescem sambas no refúgio de poesia e ritmo de Ramos. Luxo puro.
Depois a banda faz aquela homenagem a um dos maiores sambistas desse país, fruto de Ramos, inventor do banjo no samba e primeiro pop star do gênero denominado pagode. Almir Guineto é cantado com vigor e emoção pelas quase 2.000 pessoas nos clássicos imortalizados pela sua voz Conselho, Insensato Destino e Mel na Boca, canções essenciais em qualquer roda de samba decente deste país. Nosso Grito, ou Vida de Cão, outro sucesso do grupo, mais uma vez levanta a galera e antecede a bela Verdadeira Chama, sucesso de 1997.
Márcio Alexandre e Júnior Itaguay então pedem para mulheres do público subirem ao palco, sambarem e requebrarem com a canção Não Tá Nem Aí, sucesso mais recente, de 2003, fazendo a galera sambar e com a mulherada aproveitando para reverenciar a lenda Bira Presidente de pertinho. O medley Chua Chuá / Fui Passear no Norte / Moema Morenou segue o embalo partideiro do show. Diga-se de passagem, a banda emplaca sucesso atrás de sucesso sem parar e com uma velocidade rápida, muito mais acelerada que as gravações originais, um show frenético que quase não pára, ainda mais quando junta Só pra Contrariar e Irene, dois partidos altos do início dos anos 1980, com um Araújo feliz e tomado pelo verdadeiro samba. Para fechar o espetáculo, atacam de Do Fundo do Nosso Quintal, mais um clássico propício para o momento de despedida, mas o gran finale é com Caciqueando, do disco de 1983, também gravado por Beth Carvalho, a responsável de mostrar a novidade de Ramos para o mundo, canção entoada com felicidade pela plateia ensandecida. Poucas vezes vi gente tão em simetria com seu grupo preferido, todos cantando juntos, pessoas que conhecem o riscado, cantam, dançam e se emocionam. Em alguns shows de MPB vemos muitos turistas que preferem selfies e badalação, mas pouco sabem o que o artista está cantando e realmente representa, mas quem gosta do Fundo é diferente, gosta do samba e da cultura popular, um público de luxo que saiu extasiado e infelizmente, um pouco com os ouvidos lesados, pela ruim equalização de som.
Concluindo, é sempre um prazer assistir o Fundo de Quintal, um grupo com mais de 45 anos de vida, dezenas de clássicos do samba, que mesmo com perdas, trocas de integrantes, mantêm a chama da paixão do ritmo nacional acesa, e mesmo com todos os percalços sonoros da noite, tirou de letra e fez aquele povo que ama o grupo ter um domingo feliz com o coração aquecido com muito samba de qualidade. E não tem como não aplaudir Bira Presidente, um ícone, no final do show discursando emocionado falando como a apresentação foi importante pra ele e exigindo mais gente nos shows, pedindo mais facilidades (leia-se, preços mais em conta) para aquele povo que gostaria de ver o Fundo de Quintal ter essa oportunidade. Um cavalheiro do bem e divulgador das manifestações artísticas e culturais que mesmo quem não gosta, como diria A Batucada dos Nossos Tantãs, tem que aplaudir. Viva o Bira Presidente.
Crédito das fotos: Vívian Carravetta