Fugi do casamento e fui ao cinema.
Não era o meu casamento, se você está pensando isso. Aliás, se fosse, daria uma cena e tanto. O noivo mandando a nova vida às favas (uma maneira elegante de dizer “mandando tudo à merda”) e se isolando em algum cinema perdido, ainda vestido com o terno, para ver sessões seguidas de filmes B.
Não, não era o meu casamento. Também não era o casamento de algum conhecido do trabalho ou da amiga de infância da minha mulher, com a qual ela não fala há mais de dez anos. Ou seja, aquele tipo de casamento em que você se senta em uma mesa com um bando de desconhecidos e tenta manter uma conversa forçada sobre amenidades contemporâneas, enquanto aguarda o momento de ir embora sem ferir os sentimentos de quem te convidou.
Bom, não era nada disso. Também, não era o casamento de uma ex-namorada, que agora é noiva de outro amigo seu. Aquela espécie de relação triangular, na qual todos fingem naturalidade. Sob ela há um lodaçal de sentimentos imaturos e pouco elogiáveis, no qual onde chafurdam perguntas não respondidas. Quem abandonou quem? Por quê? Alguém está querendo provocar ciúme? Elx está melhor agora? Quem preferiu quem?
Essas dúvidas que o nosso subconsciente fica inventando, por inveja e despeito, para abalar a sua rival-prestigiada-por-todos consciência.
Não era o meu casamento, mas também não era qualquer casamento.
Era o casamento dos meus pais.
Eu tenho duas filhas. Uma se acercando dos quatorze anos. Outra a caminho dos quatro. Já as mencionei em crônicas passadas. São fontes inesgotáveis de histórias e inspiração. Esses dias, fiquei brabo com as duas. Envolvidas com seus aparelhos eletrônicos, desprezaram minhas tentativas de intromissão. Nem as incomodar adiantou para chamar suas atenções. A concentração no que viam e ouviam era absoluta. Com o orgulho ferido, sentei no sofá para ler alguma coisa. E, então, essa história, sobre a qual não pensava há muitos anos, retornou vívida à memória.
Ela ocorreu no início do ano de 1983, quando eu tinha dez anos. Fui dormir na casa de um primo. Meus pais viviam “em pecado”. Não eram casados nem no civil, nem no religioso. E tinham resolvido finalmente formalizar aquela união. Muito dessa decisão, vejo hoje, deu-se por minha causa. Talvez para evitar constrangimentos no colégio ou em outras situações. Eu não dava qualquer importância para aquilo. Para mim, eram casados e pronto. Essas rotulações sociais ainda não haviam entrado no rol das minhas preocupações. Mas eles decidiram se casar e marcaram uma pequena celebração com as pessoas mais próximas para o meio da tarde daquele sábado.
E aí, meu primo teve uma ideia i-n-c-r-í-v-e-l. Assistir a E.T, o Extraterrestre, no cinema Astor, que ficava perto da casa dele. Tentarei contextualizar você, leitor, sobre o que significava E.T. naquela época. Não havia Internet. Não havia séries. Revistas, livros e outras mídias sobre fantasia e ficção-científica eram caros e circulavam de forma muito restrita. Assistir a E.T. era quase como abrir uma porta de entrada para outra dimensão, onde se tinha a cabeça arrancada, revirada e remexida, para depois ser encaixada de volta no corpo ao final do filme. Todos os meus amigos que viram surtaram. Alguns emendavam várias sessões seguidas. Cinemas com capacidade de mil ou duas mil pessoas permitiam isso. Todos já tinham visto. Menos eu.
Não me lembro se tive alguma dúvida. Creio que não. Na hora, liguei para minha mãe e avisei que não iria no casamento. Eu lembro dela gaguejando no telefone. Devia ser algo surreal. O próprio filho não queria ir ao seu casamento. Tamanha foi minha insistência, que ela cometeu um erro. Disse que falaria com o meu pai e ligaria dali a pouco. Aproveitando a brecha, peguei meu primo e saímos da casa. Naqueles anos analógicos, também não havia telefones celulares. Assim, uma vez na rua, você estava incomunicável. Minha consciência estava tranquila. Eu disse onde iria. E assim, depois de enrolar um pouco nas redondezas aguardando o horário, misturei-me na turba de pré-adolescentes que se avolumava no cinema.
Em meio ao filme, quando estava absorvido pela epopeia de salvamento do extraterrestre, notei o lanterninha. Ele se detinha em cada fileira e iluminava brevemente as pessoas. Pensei que pudessem estar atrás de mim e quase me afundei na cadeira. Ele passou por minha fileira sem incidentes. Depois, vim a descobrir que sim, era a minha mãe, tentando descobrir onde eu estava e me arrastar para o casamento.
Nunca esquecerei a cara de desapontamento do meu pai, ao me buscar naquela noite. Nem ele, nem minha mãe brigaram comigo. Apenas disseram o quão tristes estavam e me deram algum castigo que não me lembro qual era. Hoje, ainda tenho a foto do casamento. Todos estão lá, menos eu. Poderia se dizer que aquela fuga para o cinema foi quase um ato de revolução e independência nerd, mas o termo ainda não havia sido inventado.
Ao final da maré de lembranças, olhei complacente para as minhas pequenas alienadas. Estavam se divertindo. Sabiam que eu estava ali. Embaixo daquela tranquilidade, havia uma rede de segurança e amor. Os pais não são o centro da vida dos filhos, embora os filhos estejam no centro da vida dos pais. É difícil para os pais compreenderem isso. Pais são pontos de partida. E também pontos seguros para onde retornar, quando precisamos de um recomeço.
Voltei ao meu livro.
E, para constar, aquele filme foi ótimo.
* Título inspirado no filme Matou a Família e Foi ao Cinema, de 1968, dirigido por Júlio Bressane e refilmado em 1991 por Neville d’Almeida.