Encantadora noite de música mineira na capital dos gaúchos

A riqueza musical brasileira dos anos 1970 fez o Brasil conhecer o Brasil. Tivemos artistas e movimentos musicais de diversas regiões do país, que emplacaram canções e sucessos na efervescente cena da época. As fronteiras foram deixadas de lado e o Brasil teve uma união cultural artística que deixou saudades. Alguns expoentes vieram de Minas Gerais. Terra do Clube da Esquina, onde uma reunião de jovens artistas como Toninho Horta, Lô e Márcio Borges, Wagner Tiso, Beto Guedes, entre outros, capitaneados por Milton Nascimento, transforam em arte toda essa ebulição de Belo Horizonte, tudo isso captado num álbum que foi recentemente considerado o maior da história do Brasil, o Clube da Esquina, de 1972. Do Clube, Lô Borges seguiu carreira solo, Beto Guedes também estourou com um disco incrível de 1977, e outro que também dava pitacos no Clube, participou da icônica banda O Terço, mas fez sucesso com outro grupo (mais um apadrinhado por Milton Nascimento), o 14 Bis. Falo do gigante Flávio Venturini. E depois de 50 anos dessa era, muitos sucessos e carreiras consolidadas, os três vieram para Porto Alegre quinta passada e cada um fez seu show no projeto intitulado A Música de Minas, transformando o Araújo Vianna num pedaço de Minas Gerais e encantando o público com suas inesquecíveis canções. E o NoSet, logicamente, conferiu e conta aqui como foi essa noite mineira.

Recebendo um público pequeno, mas grande em animação, o clima parecia de festival de colégios. Troca de palcos, músicos, acertos do som resolvidos na hora davam esse clima, com a diferença de que quem faria o show eram Lô Borges, Flávio Venturini e Beto Guedes. Cada uma teria uma hora de show e quem abriu as honras, pontualmente às 21 horas, foi Lô Borges.

Sentado, com sua guitarra Epiphone em punho, já deu as boas-vindas dizendo que ia tocar o que o povo queria e isso significa que teríamos muito Clube da Esquina.  E cumpre a promessa começando com a clássica Trem Azul, seguindo nos trilhos emenda Trem de Doido e levanta a galera com Um Girassol da Cor do Seu Cabelo. Lô continua com uma bela voz, não impecável, mas com muita energia nas suas interpretações, acompanhado por uma excelente banda. Continuando em 1972, segue com Clube da Esquina Número 2 e toca uma do seu clássico disco solo da capa que tinha um tênis, O Caçador. Dois Rios, canção que compôs com Nando Reis e Samuel Rosa, sucesso recente do Skank, faz todo mundo cantar junto com Lô. Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor segue o baile, mostrando a competência da banda. O som de Lô é aquela mistura folk, jazz, progressiva e incrivelmente melodiosa.

Tipo de show que não tem uma música fraca e quem aproveitou foi o reduzido, mas privilegiado público. Equatorial, do disco Via Láctea, de 1979, é revisitada e abre pra clássica Paisagem da Janela, um dos maiores sucessos do Clube da Esquina. Depois, explica que a próxima canção fez com 17 anos, juntamente com Fernando Brant e seu irmão Márcio Borges, música gravada por Milton em 1970, o sucesso Para Lennon e McCartney, numa interpretação visceral de Lô Borges. Depois retribui e canta a música de Milton, o sucesso Nada Será Como Antes. E vendo que o clima está quente toca de novo Um Girassol da Cor do Seu Cabelo, fechando com estilo seu grande show.

Como em um festival, findado o show de abertura começa a rápida troca de equipamentos e a banda de Flávio Venturini começa a chegar a postos para o segundo show da noite. Com uns 20 minutos de diferença, sentado com seu teclado à frente, Flávio começa o show com Planeta Sonho, clássico progressivo popular brasileiro do 14 Bis. Pena que as falhas no som motivadas por essas trocas apressadas prejudicaram a doce voz do cantor. Problema resolvido na segunda canção, Máquina do Tempo. A terceira é Girassol, de sua carreira solo. Mas o show realmente embala e sua voz ganha o destaque com a lindíssima Canção da América, música de Milton que o 14 Bis ajudou a popularizar. Digno de nota como ainda é bela a voz do artista. Com suas interpretações únicas e voz angelical, mantém sua pureza vocal característica. Como é bom ouvir o Flávio cantar! Segue o baile com Pra Lembrar de Nós, de 2003, e revisita a sensacional Nascente, dos anos 1970, para depois apresentar sua interpretação de uma música que fez muito sucesso nos anos 1980, composição  dele, mas na voz de Jane Duboc, Besame, trilha sonora da novela Vale Tudo.

Espanhola, sucesso absoluto nos anos 1980, encanta a plateia com seus falsetes bem colocados e melodia irresistível. Noites com Sol, de 1994, segue o set até emendar a apoteótica Céu de Santo Amaro, letra dele sobre uma melodia de Johann Sebastian Bach, canção que fez sucesso em dueto com Caetano Veloso e foi trilha de novela. Sem dúvida, uma das músicas mais lindas do cancioneiro brasileiro, onde Flávio transmite toda a sua paz com sua inebriante voz. Mantendo o clima romântico, segue com outro petardo, Todo Azul do Mar, em mais um show vocal. Destaque também para sua excelente banda com arranjos precisos e pegada consistente. Mais uma Vez, parceria dele com Renato Russo, faz todo mundo cantar junto com aquele refrão indefectível de quem acredita sempre alcança. Pra findar seu show ele levanta, pega o violão e ataca de Linda Juventude, sucesso da época do 14 Bis, naquela pegada folk rock and roll progressiva, coisas de Minas Gerais dos anos 1970… Fechado com chave de ouro um show que teve seus problemas técnicos, mas sanados pela força das canções e voz única de Flavio Venturini.

Para encerrar a inesquecível noite temos Beto Guedes. Talvez o menos popular dos três, mas não menos brilhante, o ótimo guitarrista e compositor começou seu show pós 23 horas. Com uma super banda, talvez a mais afiada da noite, abre o show com seu clássico Sal da Terra, de 1981, seguindo mais um sucesso de seu disco Canção da Nova Terra e fechando a tríade do disco Contos da Lua Vaga, canta a canção que dá nome ao álbum. Apesar da hora, Beto foi um dos que mais levantou a público, com arranjos pesados, levada progressiva, sua poesia classuda e voz melodiosa, esbanjando simpatia e carisma. O sucesso Espelhos D’Água segue o show, com coral afiado da plateia e em determinado momento Beto Guedes mostra todo seu talento de guitarrista, chegando a fazer um duelo de solos com o exímio baixista de sua banda.

A próxima canção é o sucesso romântico Quando te Vi, versão nacional do clássico dos anos 1950, Till There Was You, e gravado no álbum de 1984 do Beto. Lumiar, uma das suas mais famosas canções, do disco A Página do Relâmpago Elétrico, de 1977, e que fez muito sucesso com o Roupa Nova, segue o baile, com um arranjo progressivo da banda esbanjando técnica. Segue com No Céu com Diamantes, de 1984, e o sucesso Sol de Primavera, de 1979, essa cantada pelo auditório de pé. Devido às várias trocas de equipamentos de palco, a voz do Beto estava baixa, com ele várias vezes reclamando com o pessoal da técnica, fato que o deixou meio preocupado. Maria Solidária, do lendário disco de 1977, é tocada com um arranjo hipnótico pela excelente banda. Feira Moderna vem em seguida e abre pra mais um super sucesso, Amor de Índio, de 1981, mostrando a força dos hits do cantor entre 1977 e 1985. Fecha o show aplaudidíssimo com a poderosa Lagrima de Amor. Mas o povo quer mais e ele é o único a fazer bis, voltando ao palco com sua guitarra e emendando só com o baterista duas canções: Cantar e Meu Canário Azul. Aquece para a volta da banda e finalizar com grande estilo o hino mineiro dos anos 1970, Paisagem da Janela, nos dando o prazer de ouvir mais uma vez essa música na noite, dessa vez com a suave voz de Beto Guedes.

Presenciei quinta passada uma aula de música brasileira, apesar do pequeno público que compensou com a animação e avidez por boa música. Tivemos uma noite inesquecível comandada por três artistas fundamentais da nossa MPB, responsáveis por dezenas de sucessos e fundamentais na história da boa canção do Brasil. Mais que mineiros, brasileiros que souberam com suas poesias, talento e vozes imortalizar poesias, que mesmo algumas com 50 anos de vida, ainda estão no imaginário popular e na ponta da língua da galera. Muito obrigado Lô, Flávio e Beto por ainda nos dar o prazer de podermos assistir sua arte ao vivo com a mesma competência de sempre e desfilando seus sucessos eternos.

 

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