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Em um mundo não muito distópico – “Piano Mecânico”

Em um mundo não muito distópico – “Piano Mecânico”
  • Publicado em: maio 16, 2023

E se o mundo fosse totalmente automatizado? E se vivêssemos sob as regras de uma meritocracia organizada por computadores? Esse é o mundo não muito distópico de “Piano Mecânico”.

Esta não é uma obra nova, seu lançamento original se deu no ano de 1952, tendo sido o primeiro dos livros de seu autor, Kurt Vonnegut. Chegou ao Brasil graças a distribuição da Intrínseca e da tradução de Daniel Pellizzari.

É preciso contextualizar antes de falar sobre o livro em si. Kurt Vonnegut é um estadunidense de ascendência alemã, serviu a Segunda Guerra Mundial, tendo vivenciado muitos de seus horrores. Formou-se em engenharia mecânica ainda por causa da guerra, mas depois estudou antropologia, tendo, inclusive, conquistado o título de mestre desta ciência.

Em outras palavras, Vonnegut viu a Segunda Guerra mundial de perto, presenciou o crescimento da tecnologia, representada pelos computadores e pela automação, algo que marcou os anos iniciais da Guerra Fria na perspectiva dos EUA. Essa foi uma época que os estadunidenses vendiam o bem-estar que o capitalismo poderia proporcionar, incluindo os frutos dos tais computadores, mas se preparavam constantemente para uma possível Terceira Guerra Mundial.

O avanço tecnológico e a fé cega nos computadores – com um certo receio – foi representado nos livros e outros produtos culturais da época, com mundos futuristas e distópicos, como “Os Jetsons” (de 1962) e “1984” (de 1949), este último escrito por Orwell e foi uma das principais inspirações de Vonnegut.

Dito isso, apresento a vocês o mundo distópico de Paul Proteus!

Nesse mundo a tal Terceira Guerra Mundial ocorre de fato e é vencida pelos EUA, não pela força, mas pelo intelecto de engenheiros, capazes de terem construído máquinas para o campo de batalha, substituindo os soldados, salvando vidas e a pátria. Como resultado, o país passa a investir em mais máquinas e mais intelecto, ou simplesmente know-how.

Os anos de paz que sucederam à guerra também passaram a ser chamados de anos de transição, com uma nova forma de organização prática da hierarquia social. Agora tudo era ordenado pelo número do QI de cada pessoa, o que é usado para dizer que o sistema era baseado em meritocracia, aparentemente sem erros.

Ainda existia um governo nos moldes “tradicionais”, um presidente eleito pelo povo, porém sua função se tornara figurativa, era alguém que fazia aparições públicas e proferia discursos – escrito pelas máquinas. Quem praticava os atos de Estado e de Governo era o maquinário, então o poder real estava nas mãos das indústrias.

Paul Proteus tinha uma posição confortável, seu pai havia sido um dos grandes responsáveis por toda essa automação. Ele havia herdado o intelecto do pai, por isso havia se formado engenheiro, conquistou o título de doutor e estava em ascensão na carreira. Ele liderava as empresas Ilium, que hierarquicamente só perdiam para as de Pittsburgh, próximo passo profissional dele.

Não havia nada prático para Paul reclamar ou se rebelar, mas algo o deixava inquieto naquela situação, algo que ele reprimia em sua rotina. A situação mudou quando Finnerty, velho amigo, um eterno rebelde sem causa, que encontrou uma causa e ainda trouxe Paul para seu lado.

Acontece que todo esse sistema valorizava a engenharia e os conhecimentos desta ciência, você não era nada se não soubesse fazer uma equação, mesmo que tivesse habilidades em outras áreas do saber, como as artísticas. Isso colocava uma linha inflexível entre a elite intelectual e os outros, estes tendo que servir aqueles em posições inferiores por toda vida. E isso era ditado por uma máquina que não aceitava “correções”, tudo deveria seguir exatamente como ela havia organizado.

A ideia de Finnerty e de seus aliados era a revolução humana, dispensando todo tipo de máquina, ou seja, um comportamento radical e extremo tentando combater outro comportamento radical e extremo.

Há muitos outros detalhes que tornam a trama ainda mais interessante, mas não uma leitura leve, é uma estória que te faz refletir sobre muitos assuntos, alguns que são bem próximos à nossa realidade. Tem momento que o livro consegue ser assustadoramente atual, mesmo tendo sido escrito décadas atrás.

Essa sensação anacrônica, de ser um tempo atual, mesmo não sendo, é acentuado quando nos damos conta que não são usadas datas na trama. Fala-se na Segunda Guerra Mundial e em fatos históricos reais, mas os mesclam com o mundo distópico, comentando a passagem do tempo, mas nunca definem quanto tempo realmente passou, em que ano Paul Proteus está vivendo (só diz que ele tem seus 35 anos).

Outros detalhes que merecem destaque é o uso do nome de um ilustre cientista e a visão estrangeira sobre aquela realidade. Já mais para o final do livro um personagem chamado Ludwig von Neumann é apresentado, como sendo ex-professor de Ciência Política de Paul, na época da faculdade. Ele realmente existiu, mas se chamava John von Neumann, matemático e seguidos de Ludwig von Mises, nome relevante para as ciências sociais e exatas.

Já a visão estrangeira é representada pelo xá de Bratpuhr e seu intérprete, Khashdrahr Miasma, que estavam em visita aos EUA na mesma época que Paul estava repensando a realidade. O objetivo da visita internacional era conhecer o sistema de máquinas e os benefícios para a população, mas o que eles presenciaram como “progresso” não foi bem o esperado. É uma crítica – direta ou indireta – à posição de domínio que os EUA têm sobre países ditos frágeis, mas que simplesmente funcionam de forma diferente.

Embora tenha esse peso reflexivo, o livro trabalha com um pouco de sarcasmo e deboche, o que torna algumas situações cômicas, auxiliada àquela sensação de anacronia. É um livro com viés futurista, citando muitas máquinas que representam o melhor que há da ciência, mas na ciência de 1952, não na de 2022.

É estranhamente cômico eles falarem que o forno é capaz de cozinhar um prato de comida em segundos, mas ainda recebem cartas de papel com comunicados entre setores de uma empresa. Analisando o contexto do livro, isso passa a fazer sentido, mas a primeira leitura pode te deixar alguma confusão.

Até Mais!

Written By
Nivia Xaxa

Advogada, focada no Direito da Moda (Fashion Law), bailarina amadora (clássico e jazz) e apaixonada por cultura pop. Amo escrever, ainda mais quando se trata de livros, filmes e séries.