Como abordar com o máximo de imparcialidade a tumultuada transição ocorrida no Vaticano por ocasião da renúncia de Bento XVI ao posto de líder supremo da igreja Católica? Essa foi a missão que a Netflix, o roteirista Anthony McCarten (Darkest Hour, Bohemian Rhapsody) e o diretor brasileiro Fernando Meirelles aceitaram. O resultado? Provavelmente um dos mais fortes candidatos ao Oscar de melhor filme. Os motivos? Continuem comigo neste post e compreenderão tudo…
A história de Dois Papas conta os fatos que cercearam a transição do Papa Bento XVI para o Papa Francisco, atual líder da igreja Católica. Mais do que uma visão intimista desse fato histórico, o longa se propõe a destrinchar os fatores políticos, pessoais e religiosos por trás dessa que se tornaria a quarta renúncia de um Papa na história católica.
A narrativa se vale de recursos que já vimos em séries da Netflix como Narcos. Há o uso de cenas reais, reportagens da época e a inclusão de fatos das vidas deles através de reconstituições feitas com muito zelo e respeito, ainda que não sejam 100% condizentes com os relatos históricos.
E por falar em curiosidades sobre as vidas desses dois homens, eis uma cantora que fez parte da juventude de Joseph Ratzinger, o Bento XVI, chamada Zarah Leander. Ela é citada em uma cena onde os dois religiosos conversam sobre seus passados e também sobre o futuro de Jorge Bergoglio na igreja.
Dois Papas.
Apesar de ser um fato histórico de conhecimento quase geral, há muito por trás dessa trama que está abordada com maestria. Muitos não sabem, mas Ratzinger continua como Papa Emérito, um título que lhe concede certo prestígio dentro da igreja Católica, mesmo após a renúncia. Apesar do tom suave em seu falar e na conduta, o Papa Francisco tem assumido uma postura centralizadora, fato que incomoda uma certa parte do clero e fiéis.
O filme esclarece esse processo de transição desde o início, quando Ratzinger é acusado de esconder ou acobertar os atos de seu secretário pessoal, um homem acusado de lavagem de dinheiro, uso de influência e associação à Máfia. Até mesmo o banco do Vaticano tem indícios de lavagem de dinheiro e conluio com os mafiosos. Tudo isso só agrava a popularidade de Bento XVI, um Papa mais linha dura e conservador.
Mas não se surpreendam! Apesar de aparentemente diferentes, ambos possuem passados que os envergonham. Estas peculiaridades são mostradas com absoluta eficiência através dos flashbacks e das interpretações de Anthony Hopkins (Bento XVI) e Jonathan Pryce (Francisco). Não há uma única cena que remeta ao passado nazista de Ratzinger, porém isso está explícito em algumas cenas que mostram o rancor de alguns católicos quanto ao Papa .
Fé e missão.
O longa deixa claro que ser Papa é um fardo para poucos. Apesar da popularidade e das responsabilidades atinentes à condição de líder supremo da igreja Católica, Fernando Meirelles faz questão de frisar – através de sua direção – que o peso de tal posição é gigantesco, principalmente quando nem tudo está sob o controle do Papa . Aliás, até a própria vida do Papa está fora do controle dele. Ser o indivíduo à frente de uma das maiores e mais influentes religiões do planeta é algo de tal complexidade e – vale citar – dotada de um equilíbrio tão sutil que poucos podem se manter firmes diante de tais peculiaridades.
Então, viria o seguinte questionamento: “mas o Papa não é um representante de Deus? Sendo assim, ele deveria ter todo o suporte necessário para essa tarefa hercúlea, correto?”. Bem, isso é algo questionável. Liderar uma religião tão grandiosa como a católica é uma missão dificílima, mas isso não implica em dizer que Deus dará fardos menos pesados para esse líder carregar. Assim como outros líderes religiosos do mundo (Chico Xavier, Dalai Lama, Maomé, etc), nada é tão simples. É preciso suor, força de vontade e muita fé naquilo que prega e acredita. Haverá momentos de dor, cansaço, tristeza, solidão e até de desespero, pois por maior que seja seu poder, influência e prestígio, esse homem sempre será apenas isso… um homem.
Mas a missão existe e alguém precisa cumpri-la. Bento XVI não suportou a carga total e abdicou de sua posição. Francisco veio para buscar mudanças capazes de retirar a igreja Católica do ostracismo e da falência em que se encontrava em diversas regiões do mundo. Compreendam, contudo, que isso não é uma afirmação de que Bento falhou e Francisco obteve sucesso. Eles apenas são homens cujas capacidades de resistir aos problemas e traumas diferem.
Netflix ou cinema?
A verdade sobre Dois Papas é que o filme foi feito para qualquer formato, seja você um espectador de cinema, TV, computador ou smartphone. Mas, conforme o próprio Fernando Meirelles afirmou, há nuances no som e na trilha sonora que privilegiam os cinemas.
Seja como for, o fato é que essa obra é uma clara demonstração do poder dos grandes filmes elaborados através da Netflix e, na minha opinião, as futuras grandes produções serão exibidas quase que exclusivamente através do streaming.
Fato histórico ou ficção?
Não tenham dúvida: Dois Papas é um filme baseado em um dos fatos históricos mais importantes da história da igreja Católica. Mas é claro que há pontos fictícios e outros abordados com mais brandura. Mesmo que os dois protagonistas estejam vivos na vida real, os diálogos e algumas passagens foram elaborados com a liberdade poética designada aos roteiristas. Outros fatores mais controversos foram levemente abordados, porém é preciso ter em mente que o ponto focal dessa obra é a transição dos Papas e os efeitos posteriores no catolicismo.
Dois lados da moeda.
Apesar de homens com opiniões fortes e muitas vezes divergentes, Bento XVI e Francisco são personagens importantíssimos na religião católica. Isso está destacado no filme, assim como também há um grande destaque para os diálogos cujos conteúdos envolvam as opiniões deles sobre a religião em si e alguns dogmas nela contidos. Cabe relembrar que essa é uma obra dramática extremamente bem elaborada, mas não é um documentário. A visão do roteirista e do diretor estão impressas no longa-metragem e não refletem a íntegra dos fatos históricos.
Francisco é um liberal convicto, um homem que prefere a proximidade com o povo e uma vida mais simplória, fatos que estão explicados na obra cinematográfica. Por sua vez, Bento XVI foi linha dura, conservador e que recebeu a difícil missão de substituir o carismático João Paulo II. Destaco que o fato de Bento ser conservador não o classifica como um mal líder, apenas o coloca distante de fiéis que buscam mais liberdades e direitos para eles e grupos minoritários como gays, divorciados e outros. Cabe frisar que a igreja tradicional católica não aceita a prática do homossexualismo, a comunhão de pessoas separadas, além de pregar ser a única fé verdadeira não apenas por seguir os ensinamentos de Cristo, mas também por ter sido criada por ordem do próprio Jesus.
Radicalismo ou não, o fato é que o catolicismo, assim como boa parte das religiões do mundo, pregam em seu cerne o amor ao próximo e a busca por um caminho cada vez mais correto e justo. As religiões são o freio moral do mundo. Sem elas, certamente estaríamos mergulhados em um mundo caótico e ainda mais violento.
Quanto à intolerância, alguns podem acreditar que minorias são descartadas pelas religiões (em especial o catolicismo). E o que vocês classificariam como minorias? Muitos presos (inclusive assassinos confessos) recebem por intermédio da igreja – seja ela qual for – um último refúgio, uma possibilidade de redenção e de retomada de um caminho mais justo. Claro que os crimes precisam ser pagos; o que está em pauta neste instante é a possibilidade da fé trazer um homem ou uma mulher para o caminho da honestidade novamente.
Crítica aos católicos?
Vi vários vídeos de indivíduos da igreja Católica protestando sobre Dois Papas. As acusações são: equívocos históricos, tentativa de colocar Bento XVI como o vilão, o “esquerdismo” de Francisco, a narrativa tendenciosa que conduz o espectador a detestar Bento e idolatrar Francisco, entre outras.
Eu cresci e vi meus pais me conduzirem à igreja. Assisti missas e até hoje faço questão de que meus filhos vão. Isso não implica em dizer que eu seja um cristão “100%”, mas certamente não me faz pior, além de distanciar minhas crianças de influências negativas.
O fato é: Bento XVI não foi um bom líder e isso afetou muito a própria igreja. Não vou entrar no mérito de que ele tenha sido um bom Papa, mas confesso que o período dele à frente da religião trouxe mais rigor e menos carisma. Um líder precisa ter a simpatia e o respeito de seus seguidores ou, do contrário, perde força e tende a ruir, tal como aconteceu com ele. Somemos a isso a chuva de denúncias de pedofilia, escândalos sexuais e um “êxodo” que diminui bastante o quantitativo de fiéis. Por mais rico que o Vaticano seja, a verdade é que a igreja não se mantém sem seus fiéis, fato observado pelo próprio Bento e por vários seguimentos de poder dentro do catolicismo.
Então, respondendo ao questionamento que dá título a este tópico, afirmo que não há crítica aos católicos em si, mas há o apontamento sobre um homem que não resistiu às pressões do cargo ocupado e aos problemas internos da própria igreja. Afinal, um homem, mesmo um Papa, não é um deus.
Filmado no Vaticano?
Acessar o Vaticano é algo muito complexo. A segurança do Papa, as recepções às autoridades e outros fatores alheios são barreiras para as gravações naquele local. Em função disso e de outros entraves, Fernando Meirelles se valeu de computação gráfica e excelentes efeitos visuais para recriar com precisão as locações.
Acreditem, nossos olhos são enganados a todo instante por causa do grande apuro desses efeitos, obra da Union Visual Effects. Porém o destaque fica por conta do elenco que é de vital importância para que acreditemos que na reconstituição histórica, principalmente Anthony Hopkins e Jonathan Pryce.
Querem ver o quanto isso é impressionante? Vejam o vídeo a seguir…
O passado.
Por mais que estejamos diante de dois homens respeitadíssimos no mundo, eles têm um passado. Bento XVI tem um passado mais complexo por ter sua juventude situada em pleno período da Segunda Guerra Mundial. Ele serviu ao exército alemão (nazista), porém o que poucos citam é que esta foi uma época onde a inclusão na Wermacht era obrigatória. Incontáveis crianças foram incorporadas à juventude nazista e “jogadas” em pleno campo de batalha onde, infelizmente, a maioria pereceu. Outro fato que não evidenciam dessa parte do passado de Ratzinger é a deserção dele do exército, sua prisão e o encaminhamento a um campo de concentração. Em suma, ele não era um apoiador do nazismo; era outro jovem arrancado de seu lar para lutar por uma causa que não era a sua. Nota: isso não é mostrado no filme, o que já denota respeito pelo Papa Emérito e conhecimento de sua história. Em contrapartida, Meirelles faz questão de destacar o conservadorismo e o intelecto privilegiado de Bento XVI.
Já o passado do Papa Francisco está mais destacado na obra. Essa parte do filme tem o ator Juan Minujín que representa Jorge Mario Bergoglio em sua juventude. Podemos contemplar desde sua “convocação” para a igreja por parte de um padre jesuíta até os trágicos eventos que a ditadura na Argentina proporcionaram, eventos que envolvem Bergoglio e outros padres. Apesar de haver mortes e tragédias, este foi um período no qual o padre teve que tomar atitudes e decisões questionáveis que moldaram seu futuro e lhe trouxeram muita dor, mas nunca o impediram de continuar a lutar pelos que estão abandonados em seu país, fato mostrado constantemente na obra de Fernando Meirelles.
Conclusão.
Em suma, Dois Papas é uma obra que debate e aponta as falhas da igreja Católica, enquanto também destaca as dificuldades de liderar uma religião tão grande e complexa, dá humanidade aos homens à frente dela e usa as figuras desses dois Papas para destacar os pontos fortes e fracos da própria igreja. Não há o desrespeito gritante que algumas figuras pertinentes dessa igreja no Brasil apontam, porém é vital ter em mente que a ficção está presente no longa e, por tal, precisa ser visto à luz da verdadeira história. Repito: isso não é um documentário.
Por fim, Dois Papas é um filme que merece ser visto, elaborado com extremo zelo e corajoso por abordar uma crise que se arrastou por anos no seio da Igreja Católica e também por humanizar os dois homens que conduziram a mesma desde 2005 (um sucedendo o outro). O apuro técnico, as interpretações primorosas, os diálogos elaborados com maestria e até mesmo a reconstituição do próprio Vaticano são pontos extremamente positivos para a obra. Entretanto, reafirmo, é indispensável ter o conhecimento histórico da verdade por trás da transição dos Papas para evitar confundir a ficção com a realidade.