Os crimes de guerra cometidos por muitos oficiais na Segunda Guerra Mundial ainda podem ser pauta de muitos casos legais, mesmo depois de décadas do fim do conflito e por mais aleatórios como os casos possam parecer.
Exemplo disso é mostrado no longa alemão “O Caso Collini”, uma adaptação cinematográfica do livro de mesmo nome de Ferdinand von Schirach. O roteiro adaptado é assinado por Christian Zübert, Robert Gold e Jens-Frederik Otto, a direção é de Marco Zreuzpaintner.
O lançamento do filme foi em 2019, mas chegou aos cinemas brasileiros ontem, dia 19 de novembro, com distribuição da A2 Filmes.
Um brutal assassinato acontece em Berlim em 2001, o italiano Fabrizio Collini assassina um grande empresário Hans Meyer em seu escritório. Collini não deu nenhuma declaração à polícia e seu caso precisa ir para o tribunal para que o caso seja investigado e sua pena definida.
Para defender Collini é recrutado um jovem advogado, recém-formado e que acaba de se tornar defensor público, trata-se de Gaspar Leinen. Além de ser tratado com hostilidade só pelo fato de ser o jovem advogado em um caso aparentemente sem solução, Gaspar encara o desafio, tentando primeiro fazer com que o cliente desse a sua declaração em juízo.
O fato de Collini não querer falar nada sobre o caso não é o maior dos problemas de Gaspar. Ele descobre que a vítima, quem estava sendo chamado de Sr. Meyer, era Jean-Baptiste Meyer, também conhecido como Hans Meyer, que tinha sido como um pai para o advogado.
Gaspar teve uma infância difícil, criado apenas pela mãe, o pai havia abandonado a família. Hans Meyer abrigou Gaspar em sua casa, onde o garoto teve acesso a uma educação melhor e fez amizade com os netos de Hans, Phillip e Johanna (ela foi sua primeira paixão).
Essa informação poderia comprometer tudo, fazer com que Gaspar desistisse da ação, especialmente quando Johanna o pressiona para fazer isso. Mas algo no primeiro dia de julgamento o fez despertar para entender melhor a situação de Collini, a arma que ele usou, era rara, algo que ele já tinha visto na casa de Hans.
Como o próprio Collini não dizia nada, Gaspar começou a investigar. Ele então descobriu a relação que o cliente tinha com a vítima, algo que o fez ir até a cidade natal de Collini, Montecatini (na Itália). Lá a história fez sentido, mas foi um golpe ainda mais brutal para Gaspar.
Em 1944, no auge do nazismo, o exército alemão tinha tropas em várias localidades na Itália, eram braços da SS, cada uma com seu respectivo comandante. Hans Meyer era o comandante na região próxima a Montecatini e acreditava piamente em toda filosofia nazista, tendo sido o autor de um ataque entre inocentes.
Na época os alemães dessa região sofreram um ataque de um grupo rebelde italiano, resultando em dois soldados alemães mortes. Meyer instituiu a política dez por um, ou seja, mataria dez italianos por cada alemão morto, mesmo entre inocentes, escolhendo aleatoriamente a cidade Montecatini para realizar o feito. Entre os inocentes mortes estava o pai de Collini.
Saber desse passado de Hans fez Gaspar criar uma linha de defesa para o cliente, mesmo tendo destruído parte das boas lembranças da juventude. Collini não havia matado a sangue frio, tratava-se de justiça com as próprias mãos, ele matou quem havia matado seu pai sem razão nenhuma. Gaspar levou isso para o tribunal.
Em contrapartida, o advogado de Johanna (a única parente viva de Hans), que era ex-professor de Gaspar, Richard Mattinger, lembrou que Collini havia entrado com um processo contra esse crime de guerra, em 1968, mas Hans Meyer foi inocentado, então seu assassinato não haveria justificativa.
E é aí que entra o elemento mais chocante, como o país e suas leis trataram os criminosos de guerra e como muitos saíram sem punição alguma, com reputação ilibada. Primeiro que muitos mudaram o nome ao se alistarem, o que era o caso de Hans, o que despistou as investigações anteriores, depois teve a Lei Dreher.
Essa lei, decretada no final dos anos de 1960, teve o poder de transformar os crimes de guerra em crimes culposos (sem a intensão de ter sido praticado), abrandando a pena severamente. Isso permitiu que muitos funcionários públicos nazistas continuassem trabalhando normalmente para o governo, mesmo com todos os tratados internacionais pós-guerra.
Com isso confirmado pelo próprio Mattinger, que era estagiário do autor da lei na época, Gaspar pode comprovar a motivação de Collini ao matar Hans, mas também o fez se desligar de fez com a família Meyer.
Um detalhe importante é ver o quão Hans era amado e respeitado, tendo o próprio Gaspar como testemunha dessa sua generosidade e carinho, mas ninguém sabia exatamente o que ele havia feito na guerra. Gaspar é descendente de turco, um povo que também teve sua parcela de perseguição e sofrimento nas mãos alemãs, mas, ainda assim, recebeu toda essa atenção de um nazista.
Mas será que toda essa benevolência compensa toda a crueldade que fez como soldado da SS?
A consciência de Gaspar dizia que não, assim como o guiou a continuar no caso, a acreditar que havia muita história por trás do silêncio de Collini, que havia algo ali que valeria a pena conhecer e falar abertamente, mesmo que isso destruísse a figura paterna que teve durante muito tempo (Hans).
Isso não significa que ele não lutou contra sua consciência, esse conflito foi expresso algumas vezes, quando respondia a Johanna: eu sou um advogado.
Advogado não é sempre frio e calculista (isso é a descrição de outro personagem, preciso nem dizer quem é), mas precisa aprender a separar trabalho e vida pessoal, especialmente os criminalistas (que defende a lei e a justiça, não bandido … só para deixar claro).
Falando em jovem advogado, é lamentável ver como o corpo judiciário trata jovens advogados. O tempo todo a capacidade de Gaspar era testada e hostilidade, inclusive do ex-professor dele, que deveria ser o primeiro a apoiar nas horas difíceis. Mais lamentável ainda é saber que isso acontece de verdade, de diversas formas.
Uma pergunta de Gaspar a Mattinger pode alegrar os jovens advogados que assistem. A pergunta é se ele sempre foi um bom advogado, mesmo no começo da carreira dele.
O objetivo era saber se ele sempre foi a favor das leis, se nunca havia questionado a ética ou a necessidade de uma lei, o que conduziria para a Lei Dreher e o fato de ele não ter se manifestado contra na época da discussão dela. Mas o efeito inicial foi levemente cômico, como quem quisesse desafiar mitos.
O elenco é majoritariamente alemão, pouco conhecido para o público brasileiro, aqui estão alguns nomes principais: Elys M’Barek (Gaspar), Alexandra Maria Lara (Johanna), Heier Lauterbach (Richard Mattinger), Manfred Zapatka (Hans/Jean-Baptiste Meayer) e Pia Stutzenstein (Nina, intérprete contratada por Gapar para analisar os documentos italianos).
A atuação de Elys M’Barek pode ser um pouco exagerada em alguns momentos, mas, no geral, dá para ver muitos jovens advogados representados por ele ali. Os momentos entre ele de Collini são muito interessantes, têm uma dramaticidade com poucas palavras que é raro de ver, contrastando com as cenas irreverentes com Nina.
Fabrizío Collini é interpretado pelo ator italiano Franco Nero, conhecido por “Django Livre”, “John Wick: Um Novo Dia para Matar” e “Cartas Para Julieta” (tem resenha desse filme por aqui). Não é atoa que ele conseguiu passar toda a carga emocional de Collini com poucas falas, tendo essa dinâmica com o personagem de Elys M’Barek.
Gosto de ver atores que sabem fazer isso com poucos recursos.
Até mais!