Left to right: Javier Bardem and Jennifer Lawrence in mother!, from Paramount Pictures and Protozoa Pictures.

Discutindo “Mãe!”

Mãe!, a nova obra de Darren Aronofsky, não deveria ser considerado como apenas um filme. Eu diria que se trata de uma “experiência cinematográfica”. Um exemplar raro que já nasce cult e que provavelmente vai figurar nas novas edições daquelas listas de filmes para assistir antes de qualquer coisa… Na minha humilde opinião, já é um clássico.

Aliás, a palavra cult remete a filmes que não atingiram as grandes massas de público mas que, por outro lado, possui diversos fãs ou apreciadores de sua arte. Também costumam ser classificados como filme “existenciais, independentes ou estranhos”. Ou seja, filmes diferentes do convencional. Antes de falar do filme em si, continuo nessa linha: se o filme é isso tudo que os críticos estão dizendo, por que não atingiu (espero que “ainda”) uma grande parcela do público?

 

A meu ver, em primeiro lugar, por ter possivelmente tido um marketing equivocado. O longa foi vendido como um filme de horror, e lançado quase ao mesmo tempo que “It – A Coisa”. Em razão dos fortes elogios à obra de Stephen King, muitos que não tem condições de pagar ingressos por dois filmes supostamente do mesmo gênero preferiram o palhaço do que a mãe. Já adianto que de horror o filme em si não tem nada explícito (mas, se o filme funcionar pra você, certamente você vai sentir essa sensação de horror. Não pelo que o filme proporciona visualmente, mas pelo que o filme te faz refletir).

A segunda possibilidade da pouca aceitação do público, e que é ao mesmo tempo o motivo da grande procura de cinéfilos e críticos, é o histórico do diretor. Responsável por filmes carregados de drama e suspense psicológico, como “Pi”, “Réquiem para o um sonho” e “Cisne Negro”, o diretor se especializou nesse tipo de filme que causa um estrago mental para quem atua e para quem assiste. Em tempos de remakes e blockbusters recheados de ação, trazer uma obra original, existencial e reflexiva nem sempre encontra um público receptivo a esse tipo de mensagem, devido a um efeito chamado “preguiça mental” (a pessoa prefere desligar o cérebro e simplesmente consumir o filme, sem se preocupar com nada durante e depois da sessão). Algumas pessoas veem o cinema como apenas diversão, com o lema pronto “de drama basta a vida”. Existe espaço para todos. Há momentos em que a gente realmente só quer torcer por algum herói, outras vezes a gente quer se assustar com algo diferente do que ao abrir o boleto do cartão de crédito, e por que não, outras vezes sair do cinema refletindo sobre a vida, o universo e tudo mais…

 

Notem que até agora eu não falei NADA do filme. Proposital. “Mãe!” é daqueles raríssimos filmes que não acabam quando terminam. Algo que pode te fazer sair do cinema odiando cada segundo assistido e após alguns minutos achar que é o melhor filme que já viu na vida. Um filme que funciona melhor a cada vez que assiste, pois te fará tirar algumas dúvidas, ou criar mais algumas…Te fazer ter certeza que entendeu aquela parte, que associou com o fato ou pessoa correta, para logo em seguida ficar com raiva porque não conseguiu fazer nenhuma identificação com determinada cena, e buscar desesperadamente um amigo que já viu (ou quem sabe uma análise do filme na internet) procurando uma explicação, um outro ponto de vista, um debate. Lembrem do que eu disse logo no início: é uma experiência.

Se você só se convence a assistir a um filme devido às suas informações preliminares, mude de atitude, ao menos quanto a este filme. Não adianta ler a sinopse. Ela é completamente rasa, como deveria ser. Não adianta ver o trailer. Ele não vai te mostrar nada do que o filme realmente vai te fazer sentir. Não acredite no marketing de divulgação. O filme não tem como ter um gênero definido. Não espere um filme convencional. Incrivelmente, o filme te prende a atenção por 2 horas sem tocar nenhuma música!!!! Simplesmente não tem trilha sonora. Se você gosta de ver um filme em razão de aspectos técnicos como planos sequência, fotografia, cores, garanto que você (pelo menos da primeira vez) não vai ter cabeça pra se focar nestes aspectos. E as atuações? Dignas de Oscar! Jennifer Lawrence consegue transpor para o público todo o seu crescente sofrimento, angústia e degradação de sua sanidade, levando quase o filme inteiro com a câmera focada em seu rosto. Já Javier Bardem também consegue imprimir seus sentimentos de forma magistral.

Termino esta primeira parte afirmando: foi uma das melhores experiências que já vivi relacionadas ao cinema de arte. Não esperem um filme comum, não esperem um filme convencional. Estejam preparados para o filme e para tudo que vier na sua mente depois. É altamente polêmico, inquietante, corajoso, tenso e necessário. Mais uma “dica”, se você ainda não tinha lido nada sobre “Mãe!” antes: o filme é totalmente “bíblico”, dividido em três atos, com níveis crescentes de polêmica. Contém imagens fortes, explícitas, que jogam na sua cara o que você tem que saber e o que está realmente acontecendo agora. Assista, pare, pense, reflita.


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A partir de agora vamos discutir o filme? Se eu já te convenci a assistir, mas você ainda não viu, corre pro cinema e volta aqui depois, porque tenho certeza de que você vai querer saber se todas as suas referências foram as mesmas que eu tive assim que terminar de ver. Esta segunda parte é carregada de spoilers, pois eu vou contar a minha visão do que eu vi e associei.

Obviamente não sou dono da verdade, e posso ter tido algumas impressões erradas, não ter compreendido alguma referência ou mesmo ter tido um ponto de vista diferente em determinadas partes. Como o filme fala sobre religião, e esse é praticamente um assunto tabu (se o filme não for “evangélico”, feito por esse tipo e para esse tipo de público, já se sabe que vem discussão forte por aí), peço desculpas antecipadamente. Não é minha intenção ofender nada nem ninguém, mas me sinto no meu direito de apresentar a minha interpretação e as minhas opiniões pessoais.

Já começo colocando o dedo na ferida. Forte. Na minha opinião, “Mãe!” é uma metáfora de metáforas. É cheio de simbolismos, alegorias e interpretações. Um filme que te mostra uma mensagem, mas que cada um pode recebê-la e interpretá-la de uma forma diferente (isso te lembra alguma coisa?). Algumas referências são bastante óbvias, outras nem tanto. Já ouvi linhas de raciocínio que variam da minha em alguns pontos. E isso não quer dizer necessariamente que um desses pontos seja necessariamente verdade e o outro esteja errado. E só por isso o filme já funcionou, por proporcionar esse confronto de ideias, por fazer com que as pessoas reflitam e queiram saber a que conclusões a outra pessoa chegou. Como já falei, não é um filme fácil. Vocês vão perceber que ninguém tem nome próprio no filme. Então vamos nos referir a Ele, a mãe, o homem, a mulher, etc. mas vocês vão entender.

Começando pelo início. A primeira cena é praticamente a última. Lembre-se disso, vou fechar o texto com esse ponto. Logo em seguida vemos uma casa se formar e a Jennifer Lawrence aparecer. Ela e seu marido estão isolados do mundo. Sozinhos em uma casa em construção. Ela vive para cuidar dele e da casa. Ele é um poeta, um escritor. A casa é dele, mas a “mãe” que está reformando, já que a casa havia sido incendiada anteriormente. As primeiras correlações são: Ele é Deus, a “mãe” é a mãe natureza e a casa é o planeta Terra. A mãe natureza é intimamente ligada ao planeta, e é quem cuida de seu equilíbrio. Notem que a casa possui um coração. A casa está viva e inicia o longa saudável, assim como nossa terra, fauna e flora antes de ser invadida pela humanidade. Ele possui um local como se fosse um escritório, onde ele se concentra para trabalhar (para criar). Lá existe um cristal muito estimado. Falo dele depois também. No sótão da casa existe algo como um forno à lenha (algo que eu vi como o núcleo da terra), que garante o calor necessário para a casa.

De repente chega um homem na casa. Um desconhecido. Ele não demonstra espanto. Ela se preocupa. O homem chega saudável, mas logo começa a demonstrar sinais de fraqueza. Percebam em uma cena que ele possui uma ferida nas costas, na altura da… costela!!! E logo depois é uma mulher que aparece na casa. Sua esposa. Este casal começa a alterar o equilíbrio da casa, com bebida, fumo, sexo… A mãe lhe diz a aparente única regra do dono da casa: Não entrem no seu escritório. Mas o casal quebra esta regra. Entram no local e, por curiosidade, acabam quebrando o cristal, despertando um dos poucos momentos de raiva do dono da casa. O casal é expulso do escritório por Ele, que isola o local. A partir de agora ninguém poderá entrar mais lá. Referências mais do que claras a Adão, Eva, o Paraíso e a história metafórica do fruto proibido.

Em seguida conhecemos dois filhos do casal. Os filhos brigam pela herança do pai, que nem morreu ainda. A família não consegue viver em harmonia. A briga chega ao ponto de que um irmão mata o outro (referência a Caim e Abel?). A cada nova violência, a cada nova transgressão a casa vai sofrendo, e a mãe precisa consertar tudo o que está sendo quebrado. Pouco depois, chegam mais familiares e amigos. Sem pedir licença, sem a menor cerimônia, invadem a casa. Usam os quartos, comem a comida, quebram coisas, usam o local como se fossem os donos, embora a gente saiba que não sejam. Ele acolhe a todos. Ela não gosta, mas respeita a decisão dele. A mãe avisa para terem cuidado, mas as pessoas a ignoram. Resta a ela arrumar forças para continuar arrumando a bagunça deixada pelos intrusos/convidados. Acompanhamos em close o crescente sofrimento da mãe, sempre observada de perto pelo escritor.

Após uma indireta da mulher (Eva) sobre querer ou não engravidar, a mãe tem uma conversa com o marido e eles resolvem que está na hora de ter um filho. É um momento de aparente calmaria, com os convidados ausentes da casa. O poeta se inspira na mãe e nos seus hóspedes para criar uma nova obra. Que se torna um best-seller instantâneo (a Bíblia!). E esse livro atrai novamente uma multidão para a casa. Cada vez maior, à medida em que seu livro se torna mais vendido. A editora está eufórica com as vendas, e é capaz de tudo para que o livro continue sendo vendido e o poeta continue sendo cultuado. Muitos interpretam as palavras da obra como suas regras de vida. O poeta passa a ser idolatrado. As pessoas começam a brigar e a matar em seu nome. A mãe se desespera com tudo que está acontecendo. Ela avisa, grita, implora, mas as pessoas não a escutam. Algumas a ignoram, outros a maltratam. E o poeta apenas observa a tudo que acontece, sem interferir em nada (pois Ele nos deu o livre-arbítrio).

No meio desse caos, nasce o filho deles. Ela quer protegê-lo, mas Ele quer mostrá-lo aos homens, porque eles pediram para ver a criança. Em um momento de descuido da mãe, Ele pega a criança e a entrega para os seus seguidores. E, na cena mais forte e impactante do filme, o bebê morre nos braços dos homens (referência clara a Jesus). Essa criança, o filho do poeta, também passa a ser idolatrado, com algumas pessoas comendo partes do seu corpo e bebendo do seu sangue. E a intolerância, o fanatismo religioso, o ódio e violência do homem chega ao limite. Por mais que a mãe tente, ela não consegue mais evitar a destruição da casa. A mãe implora ao poeta uma atitude, pois os homens estão se matando e agredindo a ela. Mas Ele apenas perdoa a tudo e a todos. Então chegamos ao fim do ciclo. A mãe se volta contra os homens. Ela foi tão agredida e maltratada que chegou o momento em que não havia mais condições daquela casa suportar os seus hóspedes (que é exatamente o que está acontecendo hoje, com todas as alterações climáticas, aumento de furações, tsunamis, etc) e provoca um incêndio que extermina todos os convidados da casa. Ele sobrevive, intacto. ela, à beira da morte. Mas o amor incondicional que ela tem pelo poeta ainda a permite um último momento. Ela oferece seu próprio coração e Ele, que o pega, esmaga e retira de dentro dele um cristal. Ele põe o cristal delicadamente no seu local de trabalho, e a casa novamente se ergue, com uma “nova” mãe surgindo. E o ciclo recomeça. Até, quem sabe, um dia eles aprendam…

Eu considero esse cristal como a nossa essência da vida, as nossas virtudes, nosso amor, nossa pureza, nossa inocência, nossa maior conexão com o divino, que é quebrada pela corrupção dos nossos valores pela sociedade. E após os créditos finais fica aquela mistura de sensações. É possível até que você nem durma direito após assistir ao filme. E sinceramente espero que isso aconteça. Significa que você absorveu o impacto. Há mais de 2.000 anos são utilizadas metáforas para tentar explicar ao homem o que está acontecendo de errado e o que precisava ser feito para salvar a humanidade. Esta é mais uma. Resta saber quantas oportunidades ainda teremos antes do fim do ciclo.

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