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Crítica: Uma Noite em Miami

Crítica: Uma Noite em Miami
  • Publicado em: fevereiro 14, 2021

Convention Hall, Miami, 25 de fevereiro de 1964. Naquela noite, Sonny Liston, o campeão mundial dos pesos pesados, um boxeador extremamente agressivo e polêmico por suas ligações com a máfia, iria enfrentar um jovem Cassius Clay. Este, campeão olímpico em 1960, era famoso por ser um linguarudo de primeira e um insuportável provocador. Todos esperavam um massacre do trator Liston contra o novato Clay, mas o que se viu foi uma bela luta e no sétimo round, com um nocaute técnico devido a um Liston estraçalhado de pancadas, Clay se tornava o novo campeão do mundo de pesos pesados, ou como ele mesmo dizia: eu sou o rei do mundo! Depois de voar como uma borboleta e ferroar como uma abelha (frase que Clay imortalizou antes da luta) Clay foi se encontrar com três amigos e mitos negros americanos. O pregador islâmico Malcolm X, Sam Cook, um dos maiores cantores de soul do planeta e Jim Brown, o maior running back do futebol americano. Esse encontro fictício é a premissa do filme Uma Noite em Miami (One Night in Miami, 2020), adaptação de uma peça de teatro dirigido por Regina King, debutando no cinema e que pode ser conferido no canal Amazon Prime.

O filme faz um exercício de imaginação com o encontro dessas quatro lendas negras dos Estados Unidos no início dos anos 1960. Depois da luta, Cassius, que estava a um passo de entrar para a Irmandade Islâmica e se tornar Muhammad Ali, se reúne com seu amigo e tutor Malcolm X e com a companhia de Jim Brown e Sam Cook. Os quatro passam uma noite em um hotel de Miami, debatendo suas dúvidas, suas vidas e seus futuros e a importância que cada um tem naqueles turbulentos anos de luta por igualdade e direitos civis.

Uma Noite em Miami, peça de Kemp Powers de 2013, é brilhantemente adaptada para o cinema pelas novatas mãos de Regina King. Se a peça original consistia de apenas um primeiro ato, Regina nos mostra um prólogo contando um pouco sobre os quatro personagens antes do inesquecível encontro. Talvez a primeira parte seja um pouco mais cansativa, mas da metade pro fim o filme emplaca e vemos um verdadeiro embate de ideias, porque apesar de todos serem “irmãos”, cada um tem sua personalidade e maneira de ver o mundo e seus problemas, mas principalmente as suas vidas. Teatro filmado, muito bem filmado por sinal, com uma bela reconstituição de época, praticamente nos dando toda a aura de um 1964 e o que foram aqueles tempos de ventos e mudanças no mundo.

O time de atores está muito bem escalado e a semelhança física com seus personagens impressiona. Kingsley Ben Adir nos dá um perfeito Doutor Malcolm X, passando toda aquele seu jeito pregador, incisivo, dono da situação, brilhante atuação. Leslie Odom Jr. é Sam Cooke, incrível interpretação dele, tanto na parte visual quanto nos trejeitos e voz do rei do soul e as cenas em que bate de frente com o, às vezes agressivo Malcolm, mostra todo seu talento. Eli Goore faz o fanfarrão e metido a valentão Cassius Clay, caracterização quase perfeita, mas pena que usou mais os trejeitos do lutador do que explorou o ser Cassius. Completa o time Aldis Hodge, como o caladão, mas importante elo, Jim Brown.

O roteiro do filme é robusto, diálogos afiados e mostra as extremas divergências entre os quatro ídolos negros. Se Malcolm, outrora radical total, já começava a ficar em dúvida sobre a Irmandade Islâmica, começando a desconfiar de seu guru, Cassius, entrando na onda, estava a um passo de se tornar Muhamad Ali (fato real esse, enquanto Malcolm se distanciou da Irmandade, Cassius entrou nela e se afastou de Malcom pouco antes da morte deste). Jim Brown queria ser um astro de cinema e se afastar do futebol. Sam Cook, talvez com mais autonomia do que os amigos, por ser dono de uma gravadora, lançar sucessos e achar que tem domínio de sua vida sem se importar com os brancos, acaba também tendo sua iluminação, tentando ser menos escapista, lança o hino dos direitos civis, A Change is Gonna Come.

Uma Noite em Miami, além de ser um grande filme, é um filme necessário. Nunca cansa resgatar os anos 1960, uma era de mudanças, de conflitos geracionais, raciais, sociais e bélicos, uma era em que minorias começaram a ter voz e enfrentar as injustiças, cada qual a sua maneira. Se King pregava a união com pacifismo, Doutor Malcom X achava que o enfrentamento e a revolução eram a chave para o mundo. Anos 1960 era uma época em que o maior jogador de futebol americano do mundo, rico, famoso e idolatrado não podia entrar na casa de um amigo por que negros não podiam entrar na casa de brancos. Enfim, dos nosso quatro herois americanos, Clay se tornou Ali, o gigante do mundo do boxe, e talvez a maior representação da causa negra do esporte; Malcolm acabou morrendo por trair seu antigo movimento; Sam Cook acabou morto, por ironia, por uma gerente de um hotel; e Jim Brown desafiou o mundo largando, no auge, o futebol americano para ser astro de cinema. E hoje, em 2021, muita coisa mudou, mas ainda precisa mudar muito mais, e como a própria canção de Cook dizia: “Mas eu sei que uma mudança virá, oh, sim, ela virá”’.

One Night in Miami…, 2020 – Estados Unidos

Direção: Regina King

Roteiro: Kemp Powers

Elenco: Eli Goree, Kingsley Ben-Adir, Leslie Odom Jr. e Aldis Hodge

Fotografia: Tami Reiker

Trilha Sonora: Terence Blanchard

Montagem: Tariq Anwar

Design de Produção: Barry Robison

Onde Assistir? Amazon Prime Vídeo

Written By
Lauro Roth