Crítica: Um Lugar Bem Longe Daqui

Sabe aquele filme com cara de produção feita pela televisão que preenchia o horário do Supercine nos sábados à noite, que tem atores jovens com carisma mais vazio que pastel de queijo, uma história surreal de uma menina que viveu sozinha desde os 12 anos no meio do mato, mas aos 20 anos tem cabelos e dentes perfeitos e, apesar de todos esses problemas, funciona e se torna um bom filme sobre abusos, preconceito e com uma boa trama de tribunal? Esse filme é Um Lugar Bem Longe Daqui (Where The Crawdads Sings, 2022), estreia dessa semana nos cinemas, com direção de Olivia Newman.

A história de Kya é realmente muito triste. Ela morava num local brejeiro da Carolina do Norte dos anos 1950, com um pai violento e abusivo que espanca a mãe e os filhos constantemente, até que um dia a mãe resolve abandonar a casa, e seus irmãos também começam, um a um, ir embora, sobrando a menina de 12 e seu pai, que também larga tudo. Kya se vê obrigada a morar sozinha, isolada do mundo, tendo por perto apenas os donos de um armazém local, Jumpin e sua esposa. Dando um pulo para alguns anos à frente, Kya, já adulta, se relaciona com Tate, um amigo de infância que abre um pouco as portas do mundo para ela e, depois de uma ruptura entre eles, acaba ficando com Chase, um garoto popular da cidade. Um dia Chase aparece morto e o que parecia um acidente se transforma numa acusação contra Kya, a Menina do Brejo, que é presa, tem que enfrentar um julgamento e conta apenas com Tom Milton, um advogado da região, para livrá-la da acusação.

Where The Crawdads Sings foi um fenômeno literário recente, de autoria de Delia Owens, vendeu como água, fez uma legião de fãs e conta uma história que mistura machismo, abandono, abusos e, literalmente, mistérios profundos do brejo. Reese Witherspoon produz junto com Lauren Neustadter a adaptação do livro para o cinema, com um roteiro de Lucy Alibar e direção de Olivia Newman. O filme vai agradar os fãs do livro, com certeza, é uma boa adaptação, mas como disse anteriormente, infelizmente tem um ar de telefilme, tem uma bela fotografia explorando tomadas aéreas da natureza dos campos úmidos e a fauna da região, trilha sonora agradável de Mychael Dana, canção de Taylor Swift e um roteiro que intercala a prisão de Kya e em flashbacks vamos conhecendo sua triste história de abuso, violência e abandono, que a fazem ter o pejorativo apelido da Menina do Brejo. Como sempre falo, cinema é uma fábrica de ilusões, mas o filme força demais em situações. Como uma menina, por mais calejada e forte que seja, iria viver numa casa no meio de um pântano e se criar praticamente sozinha? Ou como, por mais que talento seja uma coisa inexplicável, consegue escrever e ilustrar livros tendo aprendido a ler com quase 20 anos em meia dúzia de aulas com o namoradinho Tate? E isso sem falar na aparência sempre impecável dela, para quem viveu anos sozinha e desamparada. Enfim, muitas situações inverossímeis, além de ter um ritmo irregular, não conseguindo equilibrar um bom suspense e romance, pecando nos dois lados. Mas o filme agrada quando acaba, virando um belo exemplo de filme de tribunal, dando um clima tenso às sessões, com reviravoltas nos depoimentos, além de bem colocadas situações de flashback dos momentos da vida da garota.

Já as atuações, com exceção da Daisy Edgar-Jones, que dentro do possível nos apresenta uma boa interpretação de Kya, a garota introspectiva mais adepta a natureza que ao convívio com seres humanos (apesar de que a menina Jojo Regina a interpretando como criança, sim, está excelente) e de David Strathairn, como o advogado Tom Milton, dando uma aula de interpretação de tribunal, o resto é uma falta de carisma total. Tanto Chase, vivido por Harris Dickinson e Taylor John Smith, como Tate, fazem papeis insonsos, burocráticos e sonolentos. O casal Madison, interpretado por Michael Hyatt e por Sterling Macer Jr., é um emaranhado de clichês burocráticos. Fica a impressão de que se o elenco fosse mais talentoso o filme poderia dar um salto de qualidade, mas o time escolhido pouco acrescentou à trama

Um Lugar Bem longe Daqui não é um filme ruim, longe disso, mas como é uma adaptação de uma obra recente de sucesso, podia dar um refinamento a alguns detalhes, como um roteiro mais equilibrado (apesar de as passagens temporais serem bem costuradas), atuações mais convincentes, um tom mais realista à dramática história de Catherine “Kya” Clarke. Mas na questão de tratar temas espinhosos e repugnantes como o brejo “lar” da menina, consegue mostrar sua mensagem, mesmo que superficialmente, nos apresenta uma sociedade preconceituosa e racista, relacionamentos abusivos e violência doméstica, homens irresponsáveis que tiravam proveito da inocência de Kya e, principalmente, segredos e vinganças que se escondem nas profundezas do passado e são enterrados nas lamas de pântanos pouco convidativos.

 

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