Crítica: Sob as Escadas de Paris

Precisamos falar sobre a Burkina Faso. A Burkina é um país africano, que desde 1960 é independente da França e tem quase 21 milhões de habitantes. Sua capital é Uagadugu, e o seu território faz fronteira com Mali, Níger, Benim, Togo, Costa do Marfim e Gana. “Burkina” significa honra e “Fasso” é terra. Terra da honra seria a tradução simples e direta do nome do país. Cavalos são adorados pela população, que tem uma taxa de 78 por cento de analfabetismo e, devido à fome, usar lagartas que vivem em árvores (que segundo alguns especialistas dizem, têm alto nível proteico, ricas em ferro e ômega 3), poderia ser a solução para esse flagelo. Mas como obrigar e explicar a um povo que lagartas podem amenizar a fome? Burkina também sedia o festival cinematográfico mais importante do continente africano, o Fespaco. E anualmente milhares de imigrantes de Burkina tentam entrar em território francês e melhorar de vida. Um drama peculiar de uma moradora de rua que se vê à frente de um perdido menino burquinense pelas ruas de Paris é a premissa do filme Sob as Escadas de Paris (Sous les Étoiles de Paris, 2020), do diretor Claus Drexel.

SOB AS ESCADAS DE PARIS
França | 2020 | 83 min. | Drama

Título Original: Sous les étoiles de Paris
Direção: Claus Drexel
Roteiro: Claus Drexel, Olivier Brunhes
Elenco: Catherine Frot, Baptiste Amann, Jean-Henri Compère, Dominique Frot, Richna Louvet, Farida Rahouadj, Raphaël Thiéry, Mahamadou Yaffa
Distribuição: A2 Filmes

Sinopse: Por muitos anos, Christine viveu sob uma ponte em Paris, isolada de toda sua família e de seus amigos. Em uma noite, como nos contos de fadas, um menino de 8 anos surge em seu abrigo. Suli não fala francês, está perdido, separado da mãe… Juntos, Christine e o menino partem em busca dos pais dele. Pelas ruas de Paris, os dois se conhecem e ficam muito próximos. E Christine acaba encontrando em si uma humanidade que ela pensava ter desaparecido.

Christine é uma moradora de rua de Paris, que perambula pela cidade atrás de teto, um pouco de calor e comida. Um dia sua vida vira de cabeça pra baixo, quando um menino burquinense chamado Suli, completamente perdido e sem falar francês, pede ajuda a ela para encontrar sua mãe que fora presa e se perdera do menino. No início Christine tenta evitar a situação, querendo ignorá-lo, mas aos poucos adota a criança e ambos partem para os mais diversos locais do submundo da cidade luz para achar o paradeiro da mãe de Suli.

Não tem como não comparar Sob as Escadas de Paris com o nosso clássico Central do Brasil. Com uma diferença, que Christine faz uma epopeia pela capital francesa em busca da mãe de Suli e que Fernanda Montenegro atravessa o Brasil, atrás do pai do menino que perdeu a mãe num acidente na estação Central do Brasil. Mas as comparações só ficam no argumento, Central do Brasil é muito mais filme que o simpático filme francês. Claus tem o mérito de tentar mostrar o lado underground da cidade, onde pedintes, gente abandonada pela sociedade e imigrantes vivem, literalmente, como ratos zanzando em busca de comida e proteção, além de mostrar o drama vivido pelos imigrantes africanos que arriscam a vida e a própria família em busca da redenção em terras gaulesas. Mas o roteiro do próprio Claus, juntamente com Olivier Brunhes, trata tudo de uma maneira um pouco superficial, desde a relação dos dois, que misteriosamente depois de muita negação de Christine, fica tocada tão rapidamente por Suli, mostrando muito rasamente como eles chegaram a esse ponto. Isso vale para a questão dos imigrantes, um assunto delicado e primordial no filme, mas pouco aprofundada. A fotografia de Phillipe Guilbert talvez seja uma das coisas mais bonitas da obra, mostrando Paris de ângulos diferentes, e de maneira sutil e bonita, consegue focar os contrastes entre a beleza e o caos.

Christine é interpretada pela premiada atriz Catherine Frot, que consegue criar um interessante personagem, sofrida, calejada fisicamente, mas que parece não conseguir transmitir com tanta veemência e naturalidade a reflexão interior da personagem tão necessária para a trama, coisa que Fernanda Montenegro tirou de letra em Central do Brasil. Uma atuação eficiente, mas não comovente. O menino Suli é interpretado por Mahamadou Yaffa, está muito bem no papel infantil, mas parece que ainda falta um pouco de realismo por tudo que ele estava passando. O que possa explicar é que, talvez por ser tão sofrido na vida e ter vindo escondido e fugindo nas sombras desde pequeno, Suli tem uma naturalidade diferente de viver seu drama. A dupla funciona relativamente bem, mas confesso que parece faltar uma química mais coesa, talvez a duração do filme, quem sabe, impediu de mostrar mais sincronia entre os dois.

O mérito do filme é mostrar que tanto lá quanto cá temos miséria, seres humanos vivendo como insetos, preconceito e truculência existem e muito (por mais que em alguns países a proporção é extremamente maior) e que a solidariedade, independente da condição do indivíduo, pode servir como um elixir para preencher uma vida. Christine consegue, na obstinada jornada de encontrar a mãe de Suli, uma espécie de motivação interior, um trampolim para ela mesma tentar refletir sua condição e o quanto ainda pode ser útil com seu gesto para a humanidade. Pena que Suli é um pouco mal explorado na trama, claro que a dificuldade dos dois de dialogar pode ter sido um grande empecilho, mas talvez apostar mais em Christine que na alquimia da dupla, fez o filme ser um pouco menor e mais óbvio. Mesmo assim vale a pena conferir Sob as Escadas de Paris para abrir nossos olhos, mesmo que superficialmente, do quanto a pobreza, a repressão e o drama dos africanos, burquinenses ou não, são uma triste realidade, que mesmo quando maquiada por autoridades, acontece, inclusive tendo como cenários os encantadores e belíssimos cartões postais europeus.

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