Crítica: Pisque Duas Vezes

Uma das coisas que deixa o espectador mais satisfeito é que quando ainda vemos algo que nos surpreenda, ou que faça valer a pena, ficamos quase duas horas numa poltrona de uma sala de cinema e literalmente nos contagiamos pela história E quando o filme vem de uma atriz que estreia na direção, e provoca esse sentimento, o pacote está completo. Nessa semana aterrissa nos cinemas o primeiro filme de Zoe Kravitz,  Pisque Duas Vezes (Blink Twice, 2024), que é um verdadeiro barato.

Frida é uma ambiciosa garçonete, que em uma festa de um bilionário da tecnologia, que marqueteia através de filantropia e tem uma ilha particular, é surpreendida com o convite do mesmo para passar uns dias na tal ilhota. Junto com uma colega. Jess, que é convidada para não deixar Frida tão deslocada, e um grupo de desconhecidos do tipo gente fina, elegante mas pouca sincera, ela tem a oportunidade de viver dias repletos de drinks, sol, piscina e jantares descolados em um local paradisíaco e literalmente isolado do mundo, sem comunicação, internet e até luz. Só que nesse paraíso com cara de resort de grã-fino excêntrico, essa reunião bacana só podia dar errado,  fatos estranhos começam a ocorrer e Frida começa a descobrir que Slater King, o endinheirado empresário, tem segredos perigosos e escondidos na sua ilha.

Não diria que Zoe fez uma estreia perfeita apenas porque o filme tem o pecado de dizer coisas óbvias demais, mas a diretora, com Pisque Duas Vezes, consegue criar um dos filmes mais instigantes das telonas comerciais dos últimos anos. O filme capricha em todos os detalhes, desde os enquadramentos perfeitos, simétricos, a fotografia vibrante na parte boa da ilha, onde desde um bife servido numa travessa até um simples baseado é filmado com muita maestria. Um filme que é um delirante e belíssimo delírio visual. Tudo contornado por uma edição de som sensacional, em que desde o abrir de portas, a um passo mais profundo não passam despercebidos.

Nos contagiamos com a alegria retumbante do primeiro ato, onde o prazer de viver descompromissadamente, com bebidas, drogas e boa vida se tornam um deleite para os olhos. E o que Zoe soube fazer muito bem com a mudança para a parte tenebrosa do processo, quando Frida começa a ver que o mundo não é tão colorido assim na ilha de Slater King. A história da própria diretora, em parceria com E. T. Feigenbaum, também não dá pano para arestas, amarra o espectador de uma forma vibrante do início ao fim, só com o porém que é quase insignificante para a maioria das pessoas, mas para mim incomodou um pouco, que foi ter que explicar o óbvio e deixando o bombom sem embalagem para quem assiste o filme entender tudo.

E falando da segunda parte do filme, não somos poupados em nada da violência explícita, sangueira e um vírus de vingança dos mais sensacionais do cinema. Mas para não dar spoiler melhor ficar apenas admirando a coragem da diretora de mostrar tudo. E é claro que não podemos deixar de citar toques de Jordan Peele no filme, tanto nos enquadramentos, sorrisos forçados e reviravoltas admiráveis da trama, tudo com um toque particular, senão inovador, mas extremamente competente de Zoe Kravitz. Também vale o destaque para toda a atmosfera  da ilha com alguns clichês do tipo, como seguranças mal encarados na espreita, camareiras exóticas dizendo frases soltas e amedrontadoras, cobras soltas e cômodos secretos com as tais pistas do que realmente ocorre na ilha.

Naomi Ackie está excelente como a deslumbrada mas desconfiada Frida e Channing Tatum como um vilão, o tal CEO Slater King, mesmo com suas limitações, talvez esteja num dos melhores papéis da sua carreira. Atores rodados como Christian Slater e Geena Davis também brilham como excêntricos convidados, o eterno menino de O Sexto Sentido, Haley Joel Osment, também dá seu ar da graça e as coadjuvantes mulheres, como Alia Shawkat como Jess, a melhor amiga de Frida e alívio cômico da trama, e Adria Arjona como Sarah, ex-participante de reality show de sobrevivência, merecem destaque e têm papéis cruciais na história.

Zoe Kravitz consegue misturar a influência de Jordan Peele, algo de Midsommar de Ari Aster, e por que não o movimento Me Too, numa excelente salsada, criando com seu toque pessoal e perfeccionismo visual um terror psicológico perturbador, sensorial e  violento, com requintes de vingança de torcer junto na poltrona para os vingados. Uma alegoria que demonstra até onde o controle e manipulação de alguns pode chegar com o intuito de  dominar a vida dos outros. Um filme de estreia que aumenta o nível da régua de uma realizadora novata, o que pode ser um cartão de visitas e tanto, mas que pode gerar cobranças exageradas nas obras futuras de Zoe. Enfim, o importante e com perdão do trocadilho besta, é não piscar e assistir a esse filme com prazer em alguma sala de cinema, o que nos prova que basta apenas alguma boa vontade e ideias apuradas para vermos que o cinema tem muita coisa boa para nos apresentar e Pisque Duas Vezes é um grande exemplo!

 

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