Crítica: Pedágio

Umas das coisas que mais me deixa feliz no cinema é quando um filme, com sua narrativa, consegue fugir do convencional, do óbvio. Mas para isso não precisa apelar para histórias confusas, multiversos, abalar a linearidade ou abusar do cinema autoral, muitas vezes aborrecido. Às vezes contar uma história diferente, realista, crível, bem filmada, com atuações verdadeiras e uma trama simples, mas profunda, basta para sairmos do cinema satisfeitos. Isso é o que acontece com o ótimo Pedágio, filme brasileiro que estreia dia 30 de novembro, o novo longa da diretora Carolina Markowicz.

Suellen é uma brasileira guerreira como tantas nesse país. Mora em Cubatão, uma cidade de São Paulo que teve a alcunha de ser a mais poluída do Brasil. Mora numa casa simples e acorda cedo para trabalhar em um pedágio de uma estrada. Mora com seu filho de 17 anos, homossexual, que gosta de fazer vídeos dublando divas e postando nas redes, fato que faz Suellen ficar com vergonha e preocupada com o “desvio” do filho. Uma colega de trabalho, evangélica, indica para a amiga um revolucionário método de um pastor gringo que pode levar Tiquinho, filho de Suellen, à cura gay. Mas o método é caro e Suellen não tem dinheiro. Mas tem um namorado contraventor, que vive de assaltos e rouba relógios caros. Suellen então se junta a ele e nas cabines do pedágio analisa os pulsos dos motoristas, indica pro namorado e um comparsa quem tem relógios para serem roubados e que poderiam servir como renda para procurar a tal cura do filho.

Pedágio é aquele filme de verdade. Um filme que mostra a realidade, sem maquiagens, do brasileiro. A casa de Suellen tem azulejos quebrados, fios pendurados, sofá puído e com capas. A louça está suja e as refeições são servidas nas panelas. Tiquinho, segundo a mãe, depois que dança no quarto e sua, tem cheiro de suvaco. Só por esses pequenos detalhes, já se apresenta como uma obra exemplar, sem maquiagem, sem perfumaria e sem melindres. Carolina consegue, com seu roteiro, a criação de um cenário, nos apresentar mais que uma simples história de contravenção e ignorância, mostra na nossa cara a hipocrisia da sociedade. Uma sociedade que permite traições, a amiga de Suellen super bem casada, segundo ela, há 39 anos, satisfaz seus desejos sexuais trepando com motoristas atrás de arbustos na estrada, é a mesma que confia tudo a sua igreja e ao pastor e acha um absurdo o filho da amiga ser gay.

O mesmo acontece com Suellen, que rala diariamente trabalhando no meio da estrada e acha normal entrar no crime, para os olhos da sociedade ver seu filho se tornar “homem”. E contrariando o que seria a lógica de um filme convencional, Suellen, por mais que abomine e passe embaraços com o filho, faz tudo isso por amor a ele. Tiquinho também confuso, cheio de dúvidas, mas com mais certezas, por amor à mãe, resolve entrar no tal curso, mesmo  apaixonado por um rapaz. Um jogo de aparências, de sofrimento inútil, onde quem se desestabiliza é sempre o já quase rachado núcleo familiar. Conservadorismo, bolhas de intolerância, exploração religiosa, machismo, crime e castigo, tudo isso pincelado por um realismo e naturalidade exemplar que fazem de Pedágio um dos melhores filmes do ano.

Maeve Jinkings brilha como a sofrida Suellen, mulher como milhares desse país, que tem que criar um filho sozinha, trabalhando feito bicho pra ver o filho feliz. Mas ainda com os ranços conservadores, não consegue sossegar e entender a felicidade do filho e acaba nas mãos de homens mau caráter, tanto o namorado explorador, quanto o explorador pastor que tira dinheiro de quem não tem pra enriquecer. Kauan Alvarenga também está ótimo, leve, de verdade como Tiquinho, que sonha em ser uma diva, ama a mãe e por amor, tenta nadar contra a corrente. Baita atuação. A química dos dois atores está ótima e mesmo com todos os perrengues e falta de sintonia em certas questões, demonstram um afeto e cumplicidade exemplares.

Como já tinha dito antes, cenografia está perfeita, com a casa simples da família, casa de brasileiro e até a pouco agradável e cenográfica Cubatão é um personagem a mais para a genial trama, que juntamente com o pedágio em si, representam em pequenas amostras visuais o cotidiano e a realidade da família e são peças fundamentais na trama.

Carolina Markowicz com seu Pedágio nos mostra de forma crua, visceral e com intensidade um microcosmos da sociedade, uma pintura de um Brasil e seus dramas particulares, seus exageros, preconceitos, conservadorismo, hipocrisia religiosa, mas que mesmo assim, na figura de mãe e filho de Suellen e Tiquinho, o afeto e amor ainda podem ser a solução para buscar um entendimento. 

 

 

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