Crítica: Os Rejeitados

Depois de um irregular ano de 2023, com grandes decepções e muitos abacaxis cinematográficos, é extremamente gratificante começar um ano assistindo a um filme do ano passado, mas com estreia esse ano no Brasil, do quilate do adorável Os Rejeitados, nova parceria do diretor Alexander Payne com Paul Giamatti, uma comédia dramática que desponta nas telonas essa semana.

Na trama somos apresentados a Paul Hunman, solitário professor de história em um colégio interno nos arredores de Massachusetts, no final do ano de 1970. Alcoólatra e carrancudo, como punição por ser severo demais com alunos ricos, ele é obrigado a cuidar no fim de ano de um grupo de alunos que por alguma razão não tem para onde ir entre o Natal e o Ano Novo. Em suma, fica na escola com um grupo de rejeitados. No início temos o professor, Mary Lamb, cozinheira da escola que resolve ficar por lá para sofrer seu luto pela morte do filho no Vietnã e mais alguns alunos. Mas no fim acaba sobrando apenas Angus Tully, garoto abandonado pela mãe e que, devido ao seu gênio terrível, acaba entrando sempre em conflito com o professor Paul. Juntos, os três, pessoas tão distintas, têm que aprender a conviver, dividir e exorcizar seus dramas pessoais do Natal até a virada para o ano de 1971.

Os Rejeitados (The Holdovers, 2023) não inventou a roda, mas Alexander Payne nos apresenta uma agradabilíssima experiência cinematográfica, daquelas que emocionam, causam reflexão e transformam nossas vidas por duas horas. O roteiro de David Hemigson nos transporta para uma América dos idos dos 1970, mas que  possui os mesmos dramas decorrentes de qualquer época. Claro que o clima setentista ajuda e muito, desde a fotografia no capricho, a delicada trilha sonora de Mark Orton, que pontua de maneira emocionante, sem ser piegas, a carga emocional do filme (algumas passagens com citações a canções natalinas ilustrando a época) e aquela atmosfera de drama melancólico da Hollywood, que na época se considerava “nova”, servindo como cenário perfeito para a improvável harmonia do tão diferente trio.

Paul é aquele professor que tenta abafar sua casmurrice e empáfia, jorrando intelecto e descontando seus fracassos nos jovens alunos, mas se esconde em copos de whisky e fugas da realidade, sua ruína pessoal, de um cara com tanto talento e conhecimento não ser um acadêmico respeitado com publicações notáveis que vive a lecionar para alunos mimados e ricos. Mary Lamb sofre com suas perdas, não entende como seu filho, ótimo aluno e um dos poucos negro da escola, seja, talvez por sua cor, o único que doou sua vida à máquina de guerra americana nas selvas vietcongs, e também com álcool, insônia e pouco gosto pela vida se afoga numa realista melancolia. Angus Tully, intragável, mas brilhante aluno, que sempre tem respostas para tudo e com seu ar de superioridade escala sobre seus colegas, esconde um drama pessoal, uma falta de carinho materno e uma ausência paterna, que nem todo o dinheiro e pedância do mundo são suficientes para esquentar seu coração congelado. Juntos com seus problemas em uma jornada de autoconhecimento, algo como mestre e aluno, e laços verdadeiros de solidariedade e compreensão, que mesmo forçado pelas circunstâncias, acaba se tornando uma sincera experiência de humanidade e respeito.

O filme é dos três, Da Vine Joy Randolph está excelente como a forte mas sofrida Mary Lamb, que do fundo do poço começa a ver sinais de esperança na sua vida; Domnick Sessa como a pedra de gelo Angus Tully, que aos poucos vai se derretendo, tem um papel que vai crescendo e sua atuação também segue esse andamento, nos entregando um papel comovente; Paul Giamatti está sensacional, como sempre é claro, o ator em mais uma parceria afiada com Payne, nos apresenta um professor cheio de estereótipos, mas todos colocados de uma maneira que compõem uma personalidade única, agraciado com a atuação soberba do ator, desde a voz, seu olhar, suas caras e bocas e piadas sem graça, toda a formação do professor faz um sujeito intragável ser um divino ser humano.

E Payne consegue tudo isso sem abusar dos clichês básicos, toda a carga emocional do filme é verdadeira e o tom de comédia e ironia ajudam a aliviar o realismo de uma história que mexe com relações tão complexas como pai e filho, escolas autoritárias, professor e aluno, abandono, frustrações pessoais e a carga pesada do luto e a perda de um filho. Os Rejeitados consegue, com apenas três personagens, como cenário uma escola fechada e coberta de neve, uma trilha sonora super encaixada e um clima de pessimismo da América dos anos 1970, destrinchar esses caminhos tão espinhosos em uma história que já vimos algumas vezes, mas quando bem repetida e feita com originalidade, ainda nos faz rir, chorar e nos comover. E isso Os Rejeitados faz com muito louvor, Jim Bean, citações históricas, aconchego de onde menos podemos esperar e muita humanidade, elementos suficientes para nos apaixonarmos pelo filme.

 

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